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Canto Cult #1 | Não sonhe, seja! A liberdade de Rocky Horror Picture Show

Bem-vindos ao Canto Cult, a nossa pequena coluna de filmes clássicos e alternativos do Observatório do Cinema. Teremos um espaço por mês para falar de filmes que fogem do circuito comercial e da interminável rotação de notícias sobre franquias, marcas, spin-offs e afins. A ideia é misturar colunas que tragam análises de obras clássicas com outras que reúnam novidades mais recentes do cinema independente americano e de outras partes do mundo.

Para começar a nossa coluna, no entanto, escolhemos um filme que é tão definidor de época quanto está em evidência nesse momento da cultura pop: The Rocky Horror Picture Show, o bizarro e burlesco musical de Jim Sharman de 1975. A história riquíssima do filme, que começou como peça de teatro, é de conhecimento público: desde seu lançamento, o musical ganhou status de cult e uma das legiões de fãs mais fieis do mundo, que comparecem à caráter para sessões do filme à meia-noite em cinemas por todo mundo e cantam junto com cada uma das canções compostas por Richard O’Brien.


Fãs do filme em exibição especial
Fãs do filme em exibição especial

É um fenômeno curioso de se observar – o status de cult de The Rocky Horror Picture Show começou historicamente em 1976, quando o filme já estava sendo exibido apenas em sessões da meia-noite para uma audiência fiel que quase nunca mudava. Um normalmente tímido professor escolar chamado Louis Farese Jr em certa sessão, ao ver a personagem Janet (Susan Sarandon) tentando se proteger da chuva com um jornal sobre a cabeça, gritou: “Compre um guarda-chuva, sua vadia barata!”. Aos poucos, um ritual de várias “respostas” da audiência no mesmo estilo começou a ser montado, e é seguido religiosamente em sessões até hoje.

Em torno de 1977, começou a virar tradição também um “elenco” escolhido dentro da comunidade de fãs imitarem os acontecimentos do filme exatamente enquanto eles aconteciam na tela. Essa “recriação” restrita e ensaiada do musical pode ser vista no filme As Vantagens de Ser Invisível, onde os protagonistas formam o elenco principal de uma dessas encenações (veja abaixo). Para muitos fãs, o ritual de assistir à Rocky Horror Picture Show todos os fins de semana é quase uma experiência religiosa, uma reafirmação de identidade e comunidade com aqueles que se juntam pelo mesmo propósito. Muitos autores comparam as “respostas” ensaiadas da audiência às respostas de uma missa católica aos ritos do padre.


Patrick (Ezra Miller) como Dr. Frank N Furter em As Vantagens de Ser Invisível
Patrick (Ezra Miller) como Dr. Frank N Furter em As Vantagens de Ser Invisível

Igreja da liberação

Se o culto à Rocky Horror Picture Show é como o culto de uma igreja, então o filme de Jim Sharman definitivamente prega a doutrina da liberação. Em uma das músicas mais famosas do repertório, “Touch-A, Touch-A, Touch-Me”, Janet se entrega aos amores de Rocky (Peter Hinwood), a divina criação do cientista louco Frank-N-Furter, enquanto seu futuro marido, Brad (Barry Bostwick), é “entretido” por todos os outros membros da casa, incluindo o próprio Frank-N-Furter, que se identifica como “uma doce travesti da Transilvânia transexual” em outra das músicas.

A ambiguidade sexual que os mais puristas provavelmente veriam como “profana” é tornada sagrada em Rocky Horror, um filme que faz referência a terrores kitsch do começo de Hollywood (os filmes do famoso “pior diretor da história”, Ed Wood, são grande influência da estética e estrutura do musical), mas escolhe martirizar ao invés de vilanizar o seu cientista louco, um anti-herói que prega a liberdade sexual e libidinosa de uma diva burlesca enquanto se entrega aos impulsos mais pseudo-bregas do roteiro e da concepção do filme de Sharman.

Todos os atores estão absurdamente comprometidos com o lunatismo do roteiro, mas Tim Curry sequestra o espetáculo para si como Frank-N-Furter. Atingindo níveis de loucura, exagero e malícia que nunca mais alcançaria em uma longa e produtiva carreira (e sim, estamos contando aquela vez que ele interpretou o palhaço maligno de It, de Stephen King), o ator britânico destila veneno e segundas intenções com seus traços inesquecíveis, uma paródia de si mesmo exatamente como é o filme ao seu redor – mas, essencialmente, uma paródia afetuosa.

Não é a toa que Rocky Horror marcou seus personagens no inconsciente coletivo. Os visuais inspirados em shows burlescos e filmes de terror dos anos 30 criam um contraste que nunca é menos do que surpreendente. O Igor platinado Riff Raff, a noiva de Frankenstein/emprega doméstica esfarrapada Magenta, o estilo cortesã atrevida com aquele quê maligno de Columbia, a inesquecível sunga dourada do escultural Rocky, a opulência decadente dos cenários – tudo no filme de Sharman é icônico de sua própria forma, uma explosão de referências e uma celebração de tudo aquilo que é “um pouco bizarro” ou “fora de lugar” na personalidade e na pessoa de cada um.

Cápsula do tempo

Embora sim, boa parte do charme resistente de Rocky Horror Picture Show tenha a ver com a forma como o filme cria um senso de comunidade e uma celebração do bizarro e do não convencional como poucos outros pedaços de cultura pop conseguiram fazer, outra parte desse sucesso é a forma como o filme reflete as obsessões e tendências de sua época. Como prova, basta olhar para o elenco e encontrar o rechonchudo rockstar Meat Loaf, que pegaria gosto pela atuação e teria alguns outros papeis de destaque (incluindo em Clube da Luta).

Loaf ainda não tinha lançado seu álbum definitivo, Bat Out of Hell (1977), quando Rocky Horror chegou aos cinemas trazendo o cantor como Eddie, o ex-entregador de pizza e ex-amante de Frank-N-Furter e Columbia que sequestra a criação do cientista como vingança. Seu estilo exagerado e seu rock n’ roll inspirado pela gênese clássica do gênero com guitarras mais pesadas e levada alucinante, no entanto, não era exatamente uma novidade. Quando Rocky Horror chegou aos palcos em 1973 antes de invadir o cinema, “óperas-rock” eram mania e os álbuns conceituais de The Who, Pink Floyd e David Bowie faziam a cabeça de críticos e público.

Isso não é para dizer que Rocky Horror não é inovador. A audácia de trazer personagens tão absolutamente bizarros para o cinema com uma mensagem de liberação continua sendo notável, especialmente em um ambiente que ainda engatinhava no processo de abrir espaço para novos criadores que renovariam Hollywood, como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Steven Spielberg, David Cronenberg e David Lynch.

Em um mercado que estava apenas começando a se acostumar a um ambiente comercial mais “hostil” a filmes inofensivos e mais “receptivo” a obras alternativas (um processo que seria retraído e retomado várias vezes entre 1975 e hoje em dia), Rocky Horror trouxe uma proposta selvagemente “inapropriada” para o grande cinema e ganhou uma penca considerável de seguidores fieis no processo. Muitas vezes se credita Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino, como a grande revolução do cinema independente, mas vale pensar se o ambiente desses locais e estilos alternativos de fazer filmes estaria tão aberto às ideias de Tarantino caso Rocky Horror não tivesse vindo 19 anos antes.

Embora possa ser visto hoje como uma criação antiquada, seja nos estereótipos que aplica ao Dr. Frank-N-Furter (ou ao gênero equivocado que dispensa a ele, vale apontar) ou em sua produção pouco sofisticada, Rocky Horror Picture Show conjuga as duas coisas que fazem de um bom filme mais do que a soma de suas partes: reflete a época que foi feito com a sua opulência enganadora, seus performers marcantes e sua música; tudo enquanto convém uma mensagem vibrantemente moderna que ainda inspira gerações a fio a incorporar sua própria “bizarrice”, sua própria diferença, sua própria sexualidade, sua própria “loucura”.

Com seu conto de peixes fora d’água e a comunidade de fãs igualmente desajustados que reúne em torno de si, Rocky Horror se tornou a própria encarnação da citação mais famosa de seu protagonista: Não sonhe, seja! O Dr. Frank-N-Furter ficaria orgulhoso.

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