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Cara Gente Branca | Crítica - 1ª temporada

É evidente que as mais recentes séries da Netflix possuem uma clara pretensão de abordar temas socialmente relevantes, algo que valida por si só suas mais recentes produções. Obras como 13 Reasons Why e Girl Boss são um claro exemplo disso, tentando aliar entretenimento com discussões importantes, ou fazendo das demandas sociais um grande entretenimento, dois lados da perigosa indústria cultural. Cara Gente Branca encontra-se justamente nesse lugar, mostrando em muitos momentos que diante desses dois lados existem alguns tons de cinza.

A série é baseada num longa-metragem independente de relativo sucesso que nem chegou aos cinemas brasileiros. O filme rendeu alguma controversa por abordar o racismo de forma tão irônica e tão aberta, a Netflix comprou a ideia de Justin Simien e o realizador preparou dez episódios para aprofundar as relações construídas em seu longa. Cara Gente Branca acompanha a trajetória de alguns alunos negros de uma grande e importante faculdade dos EUA, pertencente à Ivy League e tudo mais, a série retrata como esses personagens lidam com o racismo no campus da universidade, principalmente após uma festa de Halloween, onde alunos brancos se vestiram como negros, reproduzindo a velha e abominável prática do Black Face.

Evidentemente a questão racial é o centro de Cara Gente Branca. Fato é que nenhum tema se sustenta sozinho dentro de algo que possui quase cinco horas de duração. Por isso, logo de cara a série demonstra a que veio, um narrador comenta o que vai ser visto logo em seguida, com tiradas irônicas e um tom bastante sarcástico. O primeiro verso define o estilo, as propostas e objetivos de Cara Gente Branca, uma série de contestação social, com forte apelo cômico sem que isso se torne um show de diversão, mas com um humor autoconsciente do que realiza. Óbvio que essas não são proposições fáceis de serem alcançadas, Cara Gente Branca deseja falar de muita coisa, com pouco tempo, tentando sempre dosar seu humor e avançar narrativamente, às vezes de maneira irregular, às vezes de maneira bastante contundente.

A produção opta por uma estratégia narrativa bastante arriscada, cada episódio acompanha o ponto de vista de um personagem, como se a série estivesse sempre dividindo seu protagonismo. Cinco figuras, dessa forma, comandam os rumos da narrativa: Samanta White (Logan Browning), Lionel (DeRon Horton), Coco Conners (Antoine Robertson), Troy Fairbanks (Brandon P Bell) e Reggie Green (Marque Richardson). Após cada episódio de apresentação, a série retorna a cada um desses seres, apenas com a inserção de Gabe (John Patrick Amedori), o namorado branco de Samantha White.

Cada um destes representa um pensamento frente ao racismo, ou até mesmo sua condição como negro diante de um lugar majoritariamente branco. White, por exemplo, tem uma postura mais radical perante aos fatos, buscando questionar o sistema de forma combativa; já Coco é o caso de alguém com consciência do preconceito vivido, mas continua a seguir padrões impostos por uma classe dominante, o que faz de sua luta (ou algo perto disso), muito mais baseado numa conciliação forçada; ainda há Troy, filho de um reitor, também negro, que toma todas suas decisões pautadas pelas conquistas do pai, um pensamento institucionalizado, em que algumas vozes devem ser caladas em detrimento de uma política que garanta um aparente bem estar da faculdade.

Narrativamente falando, essa opção faz com que a série, pelo menos em sua primeira metade, tenha uma dissintonia bem grande. Há, dessa maneira, alguns perfis muito mais interessantes de serem acompanhados, criando uma lacuna de empatia entre um episódio outro, essas diversas visões parecem não levar Cara Gente Branca a um lugar comum, a uma concisão narrativa. Isto é contornado por volta do quinto episódio da série, onde um novo evento conecta todos, deixando claro que a desigualdade racial está enraizada naquela instituição, em seu programa de segurança e numa arma apontada para um rapaz negro.

Se essa escolha narrativa gera uma clara dissonância em Cara Gente Branca, é também a melhor forma da série abordar as questões sociais que toca. É como se os realizadores criassem um amplo painel a respeito da desigualdade racial e do preconceito na classe dos universitários. Os diversos pontos de vistas fazem com que a trama mergulhe em assuntos profundos. É óbvio, Cara Gente Branca não é um tratado sociológico, todavia é muito consciente acerca dos assuntos que fala.

E essa disparidade entre os olhares é uma questão central de Cara Gente Branca. De longe a série pode ser vista como apenas mais uma obra a tratar a questão racial (ainda que esse tipo de discussão seja bastante necessária), todavia a produção da Netflix pode muito bem ser considerada uma espécie de fogo amigo. Evidentemente que temas como a acusação de vitimização é colocada em pauta, e como isso pode muito bem silenciar um debate importante. No entanto, algo totalmente central é como as ramificações de pensamentos dentro de um próprio grupo pode prejudicar uma luta comum. Como se aquela tamanha fragmentação os enfraquecessem ainda mais, uma torre de babel entre semelhantes que tornam suas causas ainda mais difíceis. Cara Gente Branca possui a inteligência da autocrítica com a sagacidade de abordar temas relevantes de maneira aberta.

“Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado”. A frase de James Baldwin, importante pensador americano das questões raciais, abre um dos episódios e pode muito bem ser considerada a essência de Cara Gente Branca. Uma obra consciente dos problemas enfrentados atualmente, para organizar um discurso em prol de uma só causa. Um mundo que se diz pós-racial, mas ainda mantém as estruturas preconceituosas. De capítulo a capítulo, de personagem a personagem, de relato a relato a série evidencia que ainda é necessário questionar, ainda é necessário lutar pelo que se acredita, ainda é importante reivindicar direitos igualitários e mais justos, mesmo que isso traga aparentes problemas.

O grande ápice da série se dá numa grande manifestação, enquanto ocorre uma importante reunião entre representantes discentes e a direção da Universidade. Aquilo se torna um microcosmo das relações de todos aqueles personagens, como se todos componentes estivessem presentes naquele ato político. Ali acontecem as resoluções dos conflitos de ordem emocional, humana e social; o silenciamento e o grito de reivindicação enfrentam-se lado a lado; como se aquela luta por direitos igualitários realmente movesse o mundo daqueles personagens, colocassem suas vidas num dinamismo progressivo. A manifestação é cume daquilo que se debate ao longo dos dez episódios, aquele ato coloca os personagens em progressão, e Cara Gente Branca faz seu tema o grande motor de sua obra.

Cara Gente Branca pode muito bem cair num embate entre o “hype” e o “hate” (algo que parece vir embutido a toda produção Netflix), mas não se pode negar como a série debate bem os temas que propõem. Entre relevância temática e entretenimento baseado em fatos sociais, Cara Gente Branca compreende bem o seu lugar, propondo uma obra que debate com maturidade e consciência suas grandes questões raciais. Entre irregularidades e qualidades, Cara Gente Branca cumpre bem seu papel.

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