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Game of Thrones | "Dracarys": Como a série da HBO nos faz pensar na moralidade da guerra?

Desde o último domingo (06), eu revi duas vezes o episódio “The Spoils of War”, quarto da temporada de Game of Thrones. Eu prometi a mim mesmo que guardaria todas as minhas opiniões sobre a série para após o último capítulo, seja lá onde elas fossem acabar publicadas, mas a batalha entre o exército Lannister, os Dothraki, Daenerys e seu dragão é simbólica demais para ignorar, mesmo no aspecto mais superficial, na reação mais visceral.

Quando Jaime e Bronn começam a ouvir a horda de Dothraki se aproximando, seus gritos de guerra ecoando e seus cavalos fazendo ecos na terra macia, o estômago revira (mesmo na terceira vez em que você assiste). Quando Drogon, montado por Daenerys, aparece no horizonte e queima os primeiros soldados sem piedade, uma espécie de terror sem precedentes para Game of Thrones se instala. O diretor Matt Shakman, com a assistência do cinematógrafo Robert McLachlan, utiliza ângulos de câmera típicos de filmes de guerra baseados em conflitos reais (note o momento em que Bronn está fugindo e o dragão surge do meio da nuvem de fumaça como um helicóptero em meio ao napalm do Vietnã) para nos colocar em um estado de espírito frágil, e causar o tipo de conexão inconsciente que torna a cena toda ainda mais impossível de ignorar.

Jaime Lannister (Nikolaj Coster-Waldau) em "The Spoils of War"
Jaime Lannister (Nikolaj Coster-Waldau) em “The Spoils of War”

Os momentos finais, quando um Jaime torturado pelas lembranças do Rei Louco (“Queime todos…”) faz uma tentativa quase ingênua de atacar Daenerys pelas costas, só para ser impedido por Drogon e salvo da morte certa por Bronn, é um nervo exposto em forma de edição e fotografia. Latejando no fundo da cabeça do espectador está aquela percepção incômoda, que nos convida a lembrar-nos quem são esses personagens e como eles veem o mundo, e aproximar essas visões da nossa a fim de questioná-las.

Só a jornada de Jaime até esse momento, e os poucos segundos que representam sua decisão (lindamente interpretados por Nikolaj Coster-Waldau, em seu melhor momento na série), renderiam todo um artigo diferente do que vim até aqui para escrever. O que mais me intrigou lá naquela terceira vez em que assisti a “The Spoils of War”, no entanto, é como Game of Thrones procurou, e tem procurado desde o princípio, nos fazer refletir sobre a moralidade da guerra.

Aerys Targaryen (David Rintoul) em flashback de Game of Thrones
Aerys Targaryen (David Rintoul) em flashback de Game of Thrones

Afinal, o quanto o “Dracarys” de Daenerys é diferente do “queime todos” de seu pai? A pergunta está escrita em letras garrafais por toda a cena da batalha, mas parece ter sido ignorada mesmo assim. Entende-se, porque é confortável ignorá-la. Aprendemos, nas seis temporadas de Game of Thrones, a ver Daenerys em sua jornada de heroína, como a libertadora de escravos, a mulher oprimida que se levantou das cinzas (não literalmente, porque afinal ela não pode ser queimada) para triunfar e reclamar seu trono por direito. Essas são todas verdades sobre ela, mas não são as únicas verdades.

Em “The Spoils of War”, o dragão inegavelmente excitante e triunfante de Daenerys é também uma bomba atômica, dizimando milhares de vidas em um piscar de olhos. Decerto, esses não são civis comuns, mas soldados que lutam em um exército corrupto que já clamou muitas vidas (algumas igualmente corruptas, outras nem tanto). Como aquela muito odiada cena no primeiro episódio da temporada (aquela com o Ed Sheeran) nos lembrou, no entanto, soldados também são seres humanos, e nem sempre estão nas linhas de frente por livre e espontânea vontade – certamente não no mundo de Game of Thrones, onde todos os homens devem servir, e morrer.

Bronn (Jerome Flynn) em "The Spoils of War"
Bronn (Jerome Flynn) em “The Spoils of War”

Pensar na moralidade da guerra sempre foi um imperativo na nossa sociedade, que já travou tantas. A necessidade de abater um inimigo que pode lhe fazer mal, e que sem dúvida faz mal a tantas outras pessoas, equivale a uma carta branca para matar quem quer se coloque em seu caminho? Milhares de vidas salvas por milhares de outras tomadas? É mais complicado que matemática, ou estratégia de campo de batalha, como o ponto de vista de Tyrion brilhantemente representa em seu horror, conflito e piedade. A cada vez que suas cenas de guerra se tornam mais sujas ou violentas, Game of Thrones testa o limite do nosso conforto em torcer por um lado nessa disputa de poder que Daenerys quer virar a seu favor. É fácil falar de “quebrar a roda” quando você se coloca confortavelmente no topo dela.

Apesar de todas as suas falhas, Game of Thrones tocou em uma ferida aberta com precisão cirúrgica em “The Spoils of War”. A única forma de diminuir esse feito é se não travarmos o diálogo que a série quer que travemos, e ao invés disso celebremos a vitória dos “mocinhos” sobre os “vilões” com uma enxurrada de gifs e memes – que são ótimos (vide esse logo abaixo), mas não podem e não devem ser tudo.

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