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Sharp Objects | Crítica - 1ª Temporada

Jean-Marc Vallée pode ser um diretor com bons créditos no cinema (Clube de Compras Dallas e Livre são os mais famosos) , mas os maiores brilhos de sua carreira estão claramente na televisão, onde tem o espaço necessário para extrair o máximo de seus atores. Sharp Objects tem um ritmo desafiador para qualquer espectador que esteja acostumado com as típicas séries policiais americanas. As viradas do roteiro são bem espaçadas, e espera-se que o público se envolva com a história muito mais pela complexidade das personagens do que pelo mistério em si. No entanto. para aqueles que persistirem, o resultado pode ser bem recompensador.

Parte deste ritmo arrastado pode ser atribuída ao fato da trama ser composta por diversas camadas, que vão sendo reveladas sem muita cerimônia, e afetam a maneira como nós, espectadores, enxergamos a personagem de Amy Adams. Camille é uma protagonista quebrada, “danificada”, que nunca teve as resoluções necessárias para poder evoluir como pessoa. Seu comportamento é semelhante ao de uma adolescente insatisfeita, com pouca consideração pelas consequências de seus atos. Sua fragilidade é mascarada por sua autonomia, mas nunca deixamos de sentir os diversos gritos de ajuda que a personagem expressa ao longo de sua trajetória.

Sendo assim, desde o primeiro episódio, o maior trunfo de Sharp Objects está justamente na atuação de Amy Adams, que assume uma personagem demasiadamente diferente de seus maiores sucessos do cinema. Ao invés da mulher composta e resiliente que costuma trazer à tona em seus outros papéis, aqui temos uma protagonista definida por aspectos muito mais complexos de serem exibidos com eficiência, incluindo a necessidade de auto-mutilação, e as complicadas influências que movem seus impulsos.

O elogio não se limita apenas à Adams, no entanto. Patricia Clarkson também tem seus momentos de brilho espalhados pelos oito episódios, interpretando uma personagem que tem plena convicção de seus motivos para agir do jeito que age. Eliza Scanlen (que interpreta a irmã, Emma) pode acabar sendo ofuscada por estas outras duas grandes atrizes, mas não deve ser esquecida, aproveitando muito bem o potencial de sua contraditória personagem. O roteiro da série proporciona diversos espaços para que o elenco se destaque, e não há sinal de desperdício por aqui. Se não por qualquer outro motivo, a série já é plenamente justificada por estes méritos de atuação.

Mas há, também, um outro apelo forte em Sharp Objects. Seu roteiro procura construir uma perspectiva por onde suas personagens principais estão fadadas à causar sofrimento. Os grandes temas da série giram em torno da impotência, da falta de propósito, e da luta pelo controle. Não é por acaso que a história se passa em uma cidade do interior, onde todos se conhecem, e as aparências são mais relevantes do que a realidade. Porque ninguém quer encarar a realidade de que estão presos na inércia, privados de qualquer sentido em suas próprias vidas. E ninguém irá se dispor a contrariar um mundo que, pelo menos, conseguem compreender. Com o tempo, somos levados a acreditar que estes personagens fariam de tudo pela sensação de que estão no controle de suas vidas. De que importam.

Como sempre, esperamos acompanhar uma série de investigação com o propósito de sermos surpreendidos por quem é o assassino. Mas, muitas vezes, o real interesse da história está em descobrir os motivos, mais do que as pessoas em si. A revelação de que Adora é a responsável por todo este sofrimento não causa o choque que muitos esperariam, justamente porque a série deixou claro, durante sua trajetória, que a personagem não estava (nem de longe) isenta de pecados durante a criação de suas filhas. O roteiro se dispõe a compor os motivos por trás das ações, ao invés de construir apenas um típico jogo de gato e rato. Adora é uma personagem egocêntrica, incapaz de enxergar o mundo além de sua própria visão, e temerosa de que sua existência seja tão insignificante quanto a daqueles que ela despreza. .

As duas grandes comparações da série são, é claro, Big Little Lies (também dirigida por Vallée) e Gone Girl (outra adaptação da mesma autora, dirigida por David Fincher). No que diz respeito ao estilo de Gilian Flynn com suas obras literárias, percebemos uma estrutura onde a autora parte de cenários pouco empolgantes, para ir revelando as tendências de seus personagens problemáticos. Há um certo fascínio pela imprevisibilidade, e pela dissonância entre as aparências e os desejos de seus protagonistas. Sharp Objects começa sem muito entusiasmo, mas conforme os episódios passam, seus personagens vão ficando cada vez mais interessantes, justamente pela complexidade de suas falhas.

A protagonista é (literalmente) marcada pela dificuldade de suas circunstâncias, e atormentada por sua sensação de impotência. Ela, mais do que qualquer personagem, representa o quanto o ser humano precisa de ajuda, e as consequências internas de se dispor a ajudar. Todo o ser humano precisa de cuidados, precisa de relações que o sustentem, e é aterrorizante refletir sobre o quanto esta nossa necessidade pode ser explorada por outros. O quanto podemos precisar de uma única fonte de atenção e afeto, ainda que ela seja abusiva. Adora abusou de suas filhas em função de seu próprio egocentrismo, e Amma exibe perfeitamente o quanto esta relação pode ser estável quando não há nenhum outro propósito que nos faça seguir em frente. Camille, por outro lado, se afastou deste abuso, e sofreu as consequências de ser a única pessoa com quem pode contar. Conforme a história progride, esta realidade vai se tornando cada vez mais trágica de se encarar.Mais do que qualquer mistério, são estas reflexões audaciosas que tornam Sharp Objects interessante.

Eis que temos, então, uma conclusão em aberto. Ao descobrir que Amma é a real assassina da história, o roteiro estabelece um sofrimento cíclico, perpetuado por uma personagem que só conheceu esta maneira de viver, de continuar viva, e de não ser irrelevante. Sua reação revela suas problemáticas prioridades, e é o grande impacto do episódio: “Não conte para a mamãe”. Emma reproduz a única maneira que conhece de reafirmar a sua existência, impondo seu poder sobre o outro (A cena pós-créditos é meramente complementar, e serve para ilustrar o terror que já se formou na cabeça do espectador). Há espaço para continuar a história se assim desejarem, mas não há necessidade. O motivo por trás da história já foi exposto, e há muito mais valor nas indagações que o espectador fará consigo mesmo, do quê qualquer explicação mais palpável que a série poderia proporcionar. Pode não ter os mesmos choques ou a mesma estrutura engajante de Big Little Lies, mas Sharp Objects consegue transgredir diversos aspectos do gênero policial na TV de maneira revigorante, ainda que necessite de muita disposição para ser aproveitada com todo o seu potencial.

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