Críticas

Crítica | A Garota no Trem

Baseado no grande sucesso literário de Paula Hawkins, A Garota no Trem é um daqueles thrillers que tentam prender o espectador pelo seu intrincado jogo narrativo. Com ecos de Garota Exemplar, o filme funciona como suspense, mas revela sua grande força em outras questões.

O longa acompanha de maneira não linear a história de três mulheres, Anna, Megan e Rachel, sendo esta última a narradora dos eventos retratados. Todas elas possuem conexão entre si; Rachel é ex-mulher do marido de Anna, que tem Megan como babá de sua filha, com a última observada todos os dias por Rachel através do trem que passa em frente a sua casa. Apesar dessa relação, o que conecta as personagens é um turbilhão de violência, de traumas e um profundo sentimento de não pertencimento, na qual todas se sentem alheias a este mundo. Até que Morgan desaparece e de alguma forma Rachel e Anna estão envolvidas com este fato.

Assim, A Garota no Trem é um filme que depende muito da sua construção narrativa, de como mostrar, aos poucos, indo e voltando no tempo, os fatos de forma que surpreenda e mantenha o espectador preso à trama. Uma característica que funciona nesse contexto é a figura de Rachel como narradora quase onipresente, como se fosse uma espécie de narradora em primeira e terceira pessoa. Nessa função e devido a seu problema com o alcoolismo, a protagonista é uma investigadora que parte de suas memórias retorcidas para solucionar o problema, como se justificasse a supressão de diversas informações ao longo da trama, os apagões de Rachel são o gatilho perfeito para conduzir A Garota no Trem.

É bem verdade que o vai e vem de flashbacks torna-se enfadonho no decorrer do filme. Algo que parecia intrincado acaba ficando desnecessário, principalmente quando chega a seu terceiro ato, quando esta ferramenta faz com que o longa se afaste de seus momentos de tensão, interrompendo momentos chave e recheados de suspense para iniciar outro flashback. Fatos que demonstram certa irregularidade em A Garota no Trem.

O mesmo ocorre com a direção de Tate Taylor, mas que é extremamente hábil em construir uma atmosfera tensa que realmente torna envolvente a trama. Assim como consegue criar e logo em seguida destruir as relações entre personagens e público. No entanto, por muitas vezes, o diretor acaba optando por escolhas extremamente duvidosas, como uso exagerado e até piegas do slow motion em momentos que Taylor deseja empregar uma maior dramaticidade à cena. Ou até mesmo o emprego de uma imagem embaçada e tremida quando quer mostrar Rachel embriagado, um recurso para lá de senso comum.

Por isso, A Garota no Trem pode ser considerado apenas um bom suspense. Essa sua irregularidade faz com que se abram os olhos para sua característica mais interessante, o estudo entre suas três personagens. A Garota no Trem parece, antes de qualquer coisa, um exercício sobre a empatia, fazendo com que o longa seja justamente como as três personagens se conectam em seus diferentes traumas. É interessante como, através da montagem, o filme vai do close de uma personagem para o close de outra parecendo que elas são a mesma pessoa. Rachel, Morgan e Anna são na verdade três faces de um mesmo sentimento, partilhando muito mais do que se pode imaginar.

Dessa forma, o filme vai aos poucos desconstruindo uma sensação de que aquelas três são rivais, mostrando um pensamento muito mais complexo do que uma simples história criminal. Assim, a película demonstra ser uma interessante investigação da psicologia feminina, colocando temas como o gaslighting (abuso psicológico que faz a vítima duvidar das próprias memórias) no centro de um grande filme, e não de maneira extremamente didática, mas tentando colocar o espectador na mente de uma pessoa que sofre de tal abuso. Gera, dessa forma, uma empatia não só entre as personagens, mesmo que elas passem a maior parte do tempo distanciadas, mas também com o público que aos poucos vai entendendo essa questão.

Essa investigação muito mais pessoal oferece recursos para um trabalho de atuação muito maior. Vale a menção à dedicação de Emily Blunt que, nas nuances e viradas de sua personagem, vai se transformando. Com uma performance muito física que revela através de suas feições e gestos uma fragilidade constante, para aos poucos construir uma mulher sólida, forte e convicta, e realmente se vê esta mudança nas telas. A garota vista inúmeras vezes naquele trem vai moldando e rompendo barreiras psicológicas para depois surgir uma personagem incrivelmente densa.

Com isso, A Garota no Trem consegue chegar a seu final catártico, que evidentemente não será revelado aqui, mas que mostra o ápice dessas transformações e do reconhecimento da empatia. Se o filme não pode ser considerado um dos grandes suspenses do ano, possuindo algumas irregularidades nesse quesito, A Garota no Trem consegue se sair muito bem em outra chave, colocando sua câmera no centro de três mentes femininas. Um filme que acaba sendo muito mais que um simples thriller.

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