Críticas

Crítica | Doutor Estranho

Doutor Estranho pode muito bem significar novos rumos aos próximos filmes da Marvel – o estúdio que tem a chave para conquistar a audiência, mas para isso opta sempre pelo caminho mais seguro. Doutor Estranho pode ser um momento de transição para uma fase muito mais arriscada.

Dessa forma, o filme assume certos riscos na mesma medida que mantém seus pontos de segurança, fato que resulta num filme bem interessante. Doutor Estranho leva um tempo considerável para apresentar seu personagem, para construir o modus operandi do grande Doutor Stephen Strange (Benedict Cumberbatch). Fato essencial para que se acredite no arco que aquele personagem viverá.

Assim, mesmo cheio de informações, o filme não tem medo de construir um primeiro ato relativamente longo para estudar seu protagonista, demonstrando certo cuidado em relação ao Dr. Estranho. E esse planejado e até cadenciado desenvolvimento ocupa a primeira parte do longa. No entanto, o filme começa com uma pequena, mas grandiosa cena de ação dentro de um universo paralelo, como se o filme dissesse: vamos demorar um pouco para apresentar essa história, mas calma teremos cenas como a de abertura no decorrer do filme.

É devido a essa cuidadosa construção que Doutor Estranho funciona. De certa forma, tudo está nessa primeira parte do longa, esse momento inicial é a chave para tudo que ocorrerá a seguir. Desde o temperamento de Strange, gênio, mas gélido e arrogante – persona que Benedict está ficando especialista, até a questão do tempo que será o grande trunfo do personagem quando tornar-se mago. Strange não é apenas um homem que vive em função do tempo, mas alguém que sempre desejou controlá-lo; logo nos primeiros momentos, o médico abre uma de suas gavetas revelando sua enorme coleção de relógios, um homem que sempre desejou ter o tempo sem suas mãos.

Doutor Estranho é justamente um filme sobre a segunda chance que esse tempo pode dar. Se o primeiro ato é importante justamente por construir o status quo daquele homem, logo ele se dissipa e Strange fica sem rumo, constatando apenas a perda de sua vida anterior. A ida aos magos pode parecer uma busca por uma cura imediata, no entanto, representa essa jornada por uma segunda chance, mesmo que o protagonista se recuse em um primeiro momento. Se isso revela apenas características da típica jornada do herói, fórmula que o filme segue a risca, mostra também ser um pouco mais interessante, pois aquilo surge como um tema que se faz presente em toda a película.

As diversas vezes em que a Anciã (Tilda Swinton) revela detalhes dos vários universos com uma visão privilegiada de uma imortal, ela se demonstra como uma senhora dessas várias segundas chances, em que o tempo não significa um inimigo, mas sim um aliado. Para Strange, a consciência dessa propriedade temporal e de sua redenção só pode vir em outro mundo. Assim, o conhecimento possuído pela Anciã é o que conquista Strange a entrar naquele mundo e dessa forma o longa precisaria de uma destreza enorme para construir esse universo paralelo, algo que logra com muita criatividade. A primeira vez que o protagonista enxerga literalmente o multiuniverso, o espectador é convidado a fazer uma viagem por várias dimensões, num momento que a Marvel se dá o prazer de ser experimental, naquele momento é como se o cinema todo quisesse viver naquelas diversas dimensões.

Esse fato confere ao filme uma noção de que praticamente todos os efeitos especiais empregados estão em função da narrativa. Nada é gratuito, mas sim possibilidades de construir aquele universo, que se mantém próximo a realidade, todavia, contém suas próprias regras, uma viagem que o filme tem o prazer de embarcar. A inventividade visual não reside apenas na construção dessa realidade paralela, mas também em resolver questões narrativas, como o momento em que Strange está ferido conversando com seu interesse amoroso, a médica Christine Palmer (Rachel McAdams). No entanto, quem conversa com a moça é seu espírito, enquanto seu corpo permanece estático numa maca. Esse diálogo ocorre num plano astral em que a luz do hospital foge do naturalismo e no momento em que Strange pede para ela voltar à realidade, onde o diretor Scott Derrickson emprega um travelling put (movimento para trás da câmera) e Christine volta para o mundo real. Ou seja, o filme utiliza recursos totalmente cinematográficos para fazer sua distinção entre esses mundos, essa diferença não está apenas no visual, mas é evidenciada através da linguagem cinematográfica.

Dessa maneira, Doutor Estranho revela ser um filme extremamente maduro dentro do universo Marvel. Um filme que cumpre com suas pretensões, sem mais, sem menos, demonstrando-se bastante auto suficiente em suas concepções. É claro que toda fórmula Marvel continua presente, como as tiradas cômicas que às vezes funcionam, e em outros momentos surgem de forma descompassada atrapalhando o clímax cênico, algo que ocorre com frequência em Doutor Estranho.

O filme se mantém dentro das seguras escolhas do estúdio, e Doutor Estranho é uma pequena forma de mostrar que há caminhos mais interessantes dentro do universo Marvel. Se o filme possui algumas escolhas mais arriscadas, e são justamente essas que dão certo, ainda há toda uma fórmula que prende Doutor Estranho num típico filme da Marvel. Agora cabe aos próximos longas do estúdio para revelar se de fato Doutor Estranho é uma transição para uma fase mais ousada, ou apenas um ponto fora da curva.

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