Críticas

Crítica | Paraíso

A Segunda Guerra e os horrores do holocausto ainda são uma grande ferida aberta na história do mundo. Num pensamento benjaminiano o ato de rememorar é uma ação que propõe a tentativa de compreensão daqueles eventos e o mais importante que essa lembrança impeça que algo parecido ocorra novamente. Isso é um impulso para que a Segunda Guerra seja um dos temas mais recorrentes no cinema. O que tem se visto são filmes que buscam até mesmo provar que a temática pode ser retratada através de uma forma doferenciada do que já foi feito, como nos casos dos últimos dois Oscar de melhor filme estrangeiro, Ida e o Filho de Saul.

O longa da vez sobre o assunto é o russo Paraíso, vencedor do Leão de Prata do festival de Veneza e já figura na lista de pré-indicados ao Oscar de filme estrangeiro. Paraíso de certa forma se inclui nessa tentativa de encontrar um forma diferente para abordar a guerra, no entanto se diferencia por não colocar seu aspecto formal acima do material humano. A película tenta ser uma investigação humana sobre um período assombroso.

É curioso que um filme russo-germânico concentre-se sua narrativa para entender essa perspectiva da Guerra através da ocupação de Paris. Esse fato torna-se ainda mais peculiar se pensar que outro filme aclamado em Veneza e dirigido por um russo explorava o mesmo tema e a mesma perspectiva, trata-se de Francofonia – Louvre sob ocupação. Ainda que bem distintos entre si, um documentário ensaístico e Paraíso uma ficção que vez ou outra busca um aspecto documental para validar sua narrativa, ambos fazem retratos bem específicos desse periodo.

O que torna essa ligação ainda mais interessante é que tanto Francofonia quanto o filme de Andreï Konchalovsky retratam Paris como se fosse uma casa tomada, um ambiente com um hóspede indesejado, que se esconde pelos cômodos sem ser convidado, plantando naquele lar uma semente de discórdia e da corrupção, uma casa que começa a esconder corpos, mortes e violência atrás das portas.

Konchalovsky constrói o filme inteiramente com uma câmera que explora justamente esse espaço interno, enquadradando através das frestas das portas e janelas, a fim de revelar o que se esconde. Num desses planos o diretor encena um interrogatório e uma porta que se abre ao fundo do quadro revela a tortura que ocorria no cômodo ao lado, revelando a violência institucionalizada daquele encontro entre interrogador e suspeito. Paraíso é um filme que tenta forçar todas as portas desse evento catastrófico da história humana.

O filme acompanha a trajetória de três personagens em meio a esses eventos históricos, sendo eles Olga, uma aristocrata russa que vive em Paris e faz parte da resistência, acolhendo Judeus em sua casa; Jules um oficial da Polícia francesa que passa a colaborar com a Gestapo na ocupação nazista; e Helmut um jovem e rico alemão que faz parte do alto escalão do exército nazista.

O longa mostra como cada um dos personagens lida com aquele inferno na terra, Olga tentando de todas as formas sair com vida daquela opressão, entregando sua alma e corpo para poder se salvar, terrenamente falando, do Holocausto. Jules aceitando de forma apática e desumana às regras daquele hóspede, e ainda que isso traga uma crise de consciência, Jules é o homem sujeitado ao poder dos homens e da carne. E Helmut o homem do intelecto, fato que o leva a questionar tudo aquilo que vê, mas sua crença nas teorias faz com que ele se mantenha passivo naquelas situações. Paraíso apresenta um vitrine de seres humanos complexos, que foge de manequeímos em relação a guerra, as vezes humaniza o opressor para tentar compreender a relação do oprimido e assim buscar um relato muito mais sóbrio e plural.

Assim, é interessante como o filme busca a definição de paraíso justamente na voz dessas três figuras, como se o homem fosse capaz de entender tal conceito. Essa palavra divina surge nos discurso dos personagens quando fazem uma espécie de entrevista diretamente para o espectador, no recurso documental presente no longa. Helmut é a demonstração da ideologia nazista, na crença que seria possível a criação do Paraíso ariano na terra e que talvez isso pudesse ser de fato um avanço para homem, ainda que para isso fosse necessário selecionar e separar os homens, Helmut é a exemplificação da razão instrumentalizada, o conhecimento que subjuga o homem em detrimento de um projeto de poder. Do outro lado da balança encontra-se a própria Olga que entende o paraíso como a pura sobrevivência, uma personagem que vai abdicando de desejos até perder sua própria humanidade e sanidade, o inferno é tão presente que não se pode penar no paraíso.

Diante dessa série de conceitualizações nota-se que Paraíso encontra essa sua humanidade na busca por um retrato frio, calculista e extremamente racionalizado, não buscando em momento algum qualquer tipo de identificação sentimental. Dessa recusa quase que total de um sentimentalismo surge tanto para contribuir com essa análise sobria, mas também torna incompreensível certas escolhas no terceiro ato quando o filme propõe falar sobre salvação. É difícil ver essa ascensão aos céus sem um estímulo sentimental, com pouco ou nenhum envolvimento.

Essa opção que sempre distância o espectador dos personagens e eventos filmados faz com que Paraíso seja um tanto quanto difícil para o público, todavia vale ressaltar que tudo parte como proposta de Konchalovsky para sua obra. Paraíso é, por muitas vezes, um filme intragável e incômodo, a guerra servida como um prato nada apetitoso. Assim o ritmo extremamente cadenciado e arrastado, as longas sequências de diálogos filmados através de enquadramentos nada convencionais produzem um filme que se sente o peso de sua temática, ainda que, felizmente, não necessite escancarar os horrores da guerra. O peso está muito mais no que é sentido do que visto. Sem apelar para as imagens da violência da guerrar a dor é muito mais sentida dessa forma.

Dessa forma, Paraíso é um longa sobre a dor, sobre esse inferno instaurado na terra. Filme que faz questão de adotar um distanciamento crítico para provar que aquele evento que deve assombrar a história por muito tempo é sobre derrotados e não sobre vitoriosos. No seu rigor formal há o peso dessa dor, assim como em seus diálogos, o paraíso está muito mais na constatação dessa catástrofe aterrorizante do que em qualquer clamor técnico ou estético.

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