Críticas

Crítica | Na Mira do Atirador

Algumas pessoas gostam do termo filme pós-11/9 para marcar uma margem no cinema americano de discussão sobre questões étnicas, racismo, imperialismo, poder bélico e as marcas da guerra na sociedade americana que ficaram escancaradas após 2001. Ano passado tivemos A Qualquer Custo, que revisou as marcas do racismo e a potencial manipulação da mentalidade racista pelo poder. Guerra ao Terror, Distrito 9, Marcas da Violência e outros longas leram os passos americanos em torno do etnocentrismo, exploração imperialista, racismo e influência midiática. Após o início da guerra ao terror “houve sinais de um exame de consciência no cinema americano. A biografia cinematográfica de George W. Bush, W ( de Oliver Stone), objetivava fazer um questionamento de um sistema que permitiu que um homem como ele chegasse ao Salão Oval. Boa Noite e Boa Sorte fez uma alusão inteligente à caça às bruxas de McCarthy que refletia a retórica “quem não está a favor está contra” de Bush. Paul T. Anderson dirigiu Sangue Negro e transmitiu a mensagem que o poder corrompe e engendra a paranoia e o medo daqueles que se beneficiam dele. Com Guangues de Nova York e O Aviador, Martin Scorsese examinou o nascimento do EUA moderno – capitalismo, tensões raciais e os perigos da ganância e do isolacionismo”, resumiu o crítico britânico Ian Haydn Smith.

Doug Liman não é lá um novato, embora suas direções não sejam as mais aclamadas do cinema. Seus filmes mais famosos são Identidade Bourne, Sr . e Sra. Smith e Vamos Nessa. Com Na Mira do Atirador, entra no hall daqueles que revisitaram as marcas históricas do etnocentrismo e imperialismo do EUA nesse cujo título original é “The Wall” – ou seja, “O Muro”.

É bem intencionado o filme de Liman, de pretensão anti-guerra e crítica aos EUA. Isaac, um soldado estadunidense (Aaron Taylor-Johnson), em meio a uma missão no Iraque, fica a sós com um sniper iraquiano – contudo em disputa assimétrica: o iraquiano podia vê-lo, mas ele não podia ver o iraquiano. Porém, ao invés de dispará-lo, o sniper começa a conversar com Isaac (através de seu walkie-talkie o qual foi rastreado pelo calculista atirador asiático), sobre o que ambos faziam ali na guerra, as consequências desta para cada país, a espoliação “yankee”… e a única coisa que Isaac tinha como proteção à munição do asiático era um pequeno muro de tijolos, atrás do qual mantinha-se blindado do tiro de seu confrontador. Detalhe: não se vê o rosto do sniper iraquiano, apenas a voz do walkie talkie.

Mas é notório que o sentido do título original, diferente deste vago e redundante “Na Mira do Atirador”, vai além de uma mera metonímia para o duelo entre os dois snipers: é um símbolo de um mundo polarizado entre exploradores e explorados – e a opinião do roteiro tenta expor a culpa americana nisto – seja entre classes ou entre países. Na Mira do Atirador é, praticamente, um monólogo de Taylor-Johnson conversando com uma voz do além – uma vez que John Cera aparece por poucos minutos em tela. Logo, uma ousada escolha narrativa do diretor.

Os elementos colocados à mesa para Liman e o roteirista Dwain Worell são fartos para criar camadas e camadas de metáforas, um jogo de tortura psicológica e explorar uma trama de suspense. E o filme o faz, mas cabendo algumas ressalvas que o impede de ser uma obra prima.

Falemos, antes, dos pontos positivos. Taylor-Johnson vai bem, entrega veracidade ao seu papel (fator cuja ausência seria irreparável, porém evitada por um perturbado Isaac em cena). O protagonista fica entre a fúria vingativa, a insegurança amedrontadora e a desolação mórbida, alternando – compreensivelmente ao espectador dada a situação maníaca – entre os três estados. Outro ponto louvável do filme foi o ambiente de suspense que usa da imprevisibilidade e imponderabilidade da situação – era impossível prever os próximos passos do iraquiano, estamos sob o ponto de vista do norte-americano – para nos envolver em um jogo de imprecisão aterrador: não sabemos se, no próximo corte, Isaac ainda estará vivo.

Para tanto, valeu a câmera que fica sempre focada em primeiro plano, não possibilitando um olhar que permitisse acompanhar os movimentos em torno de Isaac e, assim, suscitando o suspense e uma impressão claustrofóbica – o que gera empatia a Isaac, uma vez que este está sob o mesmo efeito. A fotografia de Na Mira do Atirador, vale postular, não é em nada uma fotografia típica de um cinema comercial. Há um quê autoral e expressivo nos cortes e nos enquadramentos que desmente a rapidez poluída e exagerada com a qual a Hollywood ultimamente vem editando seus filmes, além de uma paleta de cores pálida e escaldante cuja sensação mórbida e árida é muito bem vindo para a construção da obra.

Os tópicos que, talvez, debilitam The Wall estão mais no roteiro. Por mais que a história seja interessante, e até seja instigante com a troca excêntrica de falas, a forma como o roteiro a leva para o desfecho é muito pouco astuciosa, surpreendente, provocativa e assombrosa do que a própria expectativa que o longa gera em torno de sua trama – sobretudo seu clímax – sugere. Resolve-se a trama com certa redundância e repetitividade na ação, além de algumas situações forçadas, incoerentes e didáticas-até-demais – e até mesmo clichê. Embora ainda houvesse suspense, o desenvolvimento da narrativa acaba por não levá-la a bifurcações dramáticas que, ao mesmo tempo que não soassem forçadas ou incoerentes, aumentariam gradativamente a paranoia do suspense, ao invés de estagná-la para não se tirar nada de muito original do filme em seu desfecho. Isto deu um leve toque morno à segunda metade de Na Mira do Atirador.

Por oras o roteiro tenta abrir o debate e transformar Na Mira do Atirador em um filme sobre política, guerra e exploração econômica. Contudo, isto fica restrito a algumas falas – que soam muito formais e acadêmicas para um contexto tão espontâneo e à flor da pele – do sniper iraquiano. Tais falas não são residuais, são intrínsecas à trama pois ajudam a criar a subjetividade do atirador misterioso (ah, mas vale lembrar que, mesmo assim, essa representação que o filme faz do sniper iraquiano é demonizada até demais para uma obra de entrelinhas realistas). Contudo, mesmo essa construção da subjetividade dos personagens – que envolve o terror psicológico vivido por Isaac -, embora ensaiado pelo diretor, recorrentemente acaba por ficar em segundo plano ou estabelecido com uma veracidade e intensidade que não atinge um nível glorioso de comoção e convencimento. Porém, o grande destaque mesmo fica para o suspense das cenas, que, como dito, é bem feito porém aquém das expectativas geradas pelo próprio filme – presos a soluções talvez mais óbvias e menos assombrosas do que um digno de “5 estrelas”.

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