Críticas

Mostra SP | Crítica: A Juventude de Marx

Karl Marx é um nome fundamental para compreender os percursos do mundo moderno desde a metade do século XIX, tendo ecos até os dias de hoje. É curioso como mesmo atestando sua importância, o que se vê é um distanciamento em relação a seus pensamentos por parte de quem é a favor e por parte de quem é contra, algo que obviamente deturpa o que o pensador escreveu há tempos atrás. De fato, é tempo de quem almeja entender algo de teorias sociais conectar-se com a obra de Marx, seja para defendê-la ou criticá-la, o importante é conhecê-la de fato, distante de “textões” em redes sociais e pensamentos mastigados pro terceiro.

Talvez seja esse o pensamento para a realização do longa-metragem O Jovem Karl Marx, uma tentativa de colocar públicos dos mais variados tipos em contato com o pensamento do teórico. Algo como uma introdução audiovisual aos ideais marxistas, a questão é como isso pode ser extremamente simplório, e algo que se inicia como uma boa intenção acaba não tendo um bom desenvolvimento, mostrando-se como um projeto muito mais questionável do que verdadeiramente relevante.

O Jovem Karl Marx é uma típica cinebiografia, levando seu retrato da agonia à glória em 120 minutos, algo que explicita seus pensamentos, mas principalmente edifica uma figura, individualizando pensamentos e fazendo da narrativa audiovisual um amontoado de ações para construir uma epopeia de um homem, no caso um teórico, transformando-se em algo muito maior que um ser humano. Um filme que eleva a condição do personagem histórico sem ter a consciência de seu trabalho e de suas ideias.

Alias isso é o que mais parece problemático em O Jovem Karl Marx, um filme que individualiza glórias de um pensador que propunha coletivizações em primeira instância. A narrativa do longa chega até mesmo ser meritocrática, algo que não se alia aos ideias marxistas. Karl Marx muitas vezes é retratado como um ser acima da média, um subversivo corajoso, praticamente único a ser capaz de mudar o mundo. E realmente se foram as ideias do alemão que transformaram o panorama do mundo, é necessário entender que suas teses surgiram a partir de um período de muita efervescência intelectual, troca de teorias, um processo dialético que resultou nas obras mais importantes de Karl Marx. No filme nomes como Mikhail Bakunin são tratados como teóricos inferiores, não preparados ao que Marx dizia, ou apenas meros rivais dispostos num jogo maniqueísta. O Jovem Marx parece ser desprovido de responsabilidade histórica a fim de mostrar a importância de seu retratado.

Dirigido por Raoul Peck (Eu Não Sou Seu Negro), que também escreve o roteiro junto com Pascal Bonitzer (A Bela Intrigante), demonstra realmente que sua principal dificuldade é fazer um processo de representação digno do valor histórico daqueles personagens. Nessa dificuldade, os caminhos parecem ser sempre os mais questionáveis. O Jovem Marx é carregado de frases de efeitos, de momentos que revelam a força de seus personagens, de diálogos explicativos e personagens questionáveis. É o caso da representação das esposas de Marx e Engels, reproduzindo o típico clichê das grandes mulheres que dão base aos grandes homens, mas que ficam a sua sombra, sem que isso seja minimante explorado.

O Jovem Marx é um filme de reprodução de discursos realmente, que encaixa a história de Marx num rígido sistema de representação. É dessa forma que surge no longa de Peck uma série de cenas que ultrapassam o limite da superficialidade. Como no momento em que a dupla confronta um industrial inglês no meio de um saguão, uma cena que surge apenas como artifício para mostrar que as ideias dos dois incomodavam e tinham valor prático, mas aquilo não parece nada natural na trama, algo apenas para explicitar essas características. Ou como a cena numa praia, em que Engels tenta convencer Marx que o proletariado precisa de uma obra que resuma suas ideias, algo totalmente forçado, que não se acredita na hesitação do autor em relação a sua obra, uma tentativa de encaixar Marx num modelo de jornada do herói.

Entre sentimentalismo, glorificação individual e uma boa parcela de didatismo a direção de Peck só ganha por ser dinâmica o suficiente para fazer as duas horas fluírem no cinema. No mais, o filme se resume a ser uma obra que tenta ser explicativa, com planos que resumem aquilo que se diz, ou seja, reforça as palavras de seus diálogos. O Jovem Karl Marx lembra muito mais um filme televiso com alguma pretensão didática, do que alguma obra com valores cinematográficos, há por outro lado valores de produção, os figurinos, os cenários, tudo que resultam numa grande reconstituição de época.

O Jovem Karl Marx parte de princípios que apenas não se encaixam com os valores que deseja passar. Apenas realocando a história do pensador em procedimentos típicos de uma cinebiografia. Talvez o próprio Marx não gostasse de ser representado dessa forma, uma obra que tenta reforçar seu lado heroico. Se a representação da história de Marx não é satisfatória, o longa ainda tem em seus créditos imagens de problemas atuais, como a miséria e crise econômica, ao som de Like a Rolling Stones, algo que não dialoga com nada do que foi visto no longa. A Juventude de Karl Marx acaba sendo mais uma obra que deixa turva a relação entre público e os escritos do pensador alemão.

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