Críticas

Mostra SP | Crítica: Happy End

O austríaco e multipremiado Michael Haneke costuma ser cirúrgico em suas análises densas, intensas e cruéis sobre a sociedade e as relações humanas, colocando como palco dessa constante neurose coletiva a Europa, local que possui um sentimento intrínseco de cultura e civilização. Haneke desenlaça códigos e etiquetas, a fim de revelar sempre o lado mais sórdido desses relacionamentos, sem grafismos e exageros, apenas filmando o absurdo.

Talvez seja necessário comentar que Happy End está longe de entrar para os melhores filmes do cineasta, cuja filmografia prolífica dificulta e eleva o padrão dessa comparação. Este título é um pouco mais contido, muito menos brutal e radical, mas marcado por uma ironia profunda, um humor incômodo em relação aos fatos que são filmados. Em Happy End parece que Haneke altera quase completamente sua lógica em relação aos personagens que cria, se antes eles inspiravam preocupação, medo, repugnância e até um pouco de compaixão, agora parece que são completamente ridicularizados, como se fossem seres que se dão mais importância do que realmente possuem, e seus atos só podem levar a um riso desmedido, despreocupado com a real importância de suas ações.

Happy End se passa no cerne de uma rica família burguesa em Calais na França, dona de uma construtora que se envolve num terrível acidente em uma obra, envolvendo mortos e feridos. Dentro das paredes da família, o patriarca, Georges Laurent (Jean-Louis Trinttigant) está infeliz com sua vida numa cadeira de roda. Na casa ainda vive sua filha, Anne Laurente (Isabelle Huppert), que gerencia o negócio do pai, está prestes a se casar com um estrangeiro e tem sérios problemas com seu filho, que se recusa a seguir império da família. Os cômodos ainda são divididos com outro núcleo, o do filho homem, Thomas Laurent (Mathieu Kassovitz), um homem que acaba de ter um filho com sua nova esposa, mas tem que cuidar da sua filha do primeiro casamento, já que sua primeira companheira tentou o suicídio. Fora dessa casa e de todo seu regimento interno está a crise de refugiados que toma conta da cidade e da sociedade.

O longa é marcado por um constante sentimento de conflito, no qual esses personagens estão num eterno choque, como se cada um estivesse numa luta particular, que vez ou outra, colide com a de outro personagem, como se todos desejassem ser o centro das atenções, de costas para qualquer outro problema, pensando apenas em suas próprias soluções. Um filme de homens e mulheres poderosos, acostumados com os poderes e com o regimento do mundo a favor deles mesmos, acima de tudo um filme de protagonistas de uma sociedade.

Esse multiprotagonismo egocêntrico é refletido em todo o longa, Happy End é um filme de pessoas incapazes de dialogar, um longa de uma incomunicabilidade que gera uma disputa de forças e não uma ausência de contato, ou alguma angústia por essa situação. Os seres do filme aproveitam-se dessa situação, realmente desejando essa falta de comunicação para seguirem trilhando apenas seus próprios objetivos.

Assim, as relações esfaceladas afetam propositalmente a montagem de Happy End, com um processo de edição que faz com que as sequências envolvendo algum personagem pareçam não combinar com a sequência seguinte envolvendo uma outra figura. Insinua-se que os núcleos compositores desse filme estão em completa dissintonia. Isso ocorre porque nessas sequências o diretor e o montadora, Monika Willy, parecem ocultar alguma informação, parece sempre estar faltando algum detalhe ou imagem para que se entenda alguma conjuntura dessa família. No entanto, o corte ocorre e o outro núcleo está numa situação completamente diferente, sem ligação alguma com a anterior, e assim sucessivamente. A sensação para o espectador é justamente de estar acompanhando um dialogo entre incomunicáveis.

Essas diversas linhas individuais traçadas faz com que Happy End ressalte esse desejo por individualismo, algo que gera um estranho sentimento de que na realidade nenhum ali é de fato o centro do filme, mas apenas sujeitos que não percebem a real dimensão de seus problemas. Nessa lógica é que Haneke incorpora a filmagem de celular, e trabalhar com diversidade de materiais audiovisuais, como fazia com a imagem televisiva e a utilização do vídeo em seus filmes dos anos 1990, é uma de suas virtudes. Aqui a imagem do celular, que às vezes surge como um vídeo gravado por um dos personagens, às vezes através da captura das telas do aparelho dos protagonistas, funciona como uma espécie de imagem construída a partir de um olhar inserido naquela família, uma visão que já nasce deturpada mas revela todo o pensamento daqueles seres; uma produção imagética sempre incapaz de capturar o outro, que faz questão de deixa-lo a margem, refletindo e capturando o próprio personagem e seu individualismo, o selfie acima de tudo. O celular passa a ser um meio de comunicação que não serve como tal, pelo contrário, reforça as respectivas individualidades e a incomunicabilidade.

Fora do ego existe a questão do refugiado, um ser invisível, que apenas passa ao fundo das questões centrais daquela família, sempre intocada por questões sociais. Com um mundo em colapso, com a crise de sujeitos sem pátrias que buscam abrigo, a única resposta é um individualismo maior. E a única vez que eles realmente surgem na frontalidade da câmera é para incomodar aqueles sujeitos, utilizados como mero joguetes por um membro da família. Não por simpatia, ou consciência, mas apenas como uma simples vingança, apenas para manchar os limpos guardanapos daquela família.

Como o título remete, Happy End é um filme da ironia, que por um ou outro momento faz o espectador rir diante dessa busca pela individualidade, um egoísmo ridículo e extremamente ridicularizado. Se na maioria dos filmes de Haneke, o final surge como uma última pancada de uma narrativa torturante filmada com passividade, fechando suas obras com uma questão reflexiva, o que ocorre aqui é realmente um abandono de qualquer solução, uma desistência frente àqueles personagens e suas ações, como se realmente não valesse mais apenas propor alguma mudança, mas apenas ironizar aquele processo.

Parece que o amargor de alguns filmes de Haneke propunha um mínima saída daquelas situações, o que ocorre aqui é apenas uma desilusão completa, concluindo sobre a impossibilidade de agir frente à estupidez humana. Diante disso é curioso como Happy End possui cenas que dificilmente se encontra na filmografia do diretor, como uma performance ridícula de um personagem em um karaokê. Ou até mesmo uma autoindulgência de sua própria figura quanto cineasta, quando o personagem de Jean-Louis Trintignant conta uma história para a neta, e o que é narrado se parece com os ocorridos em Amor, um dos mais conhecidos filmes de Haneke. Há nesse sentido uma espécie de fan service do cinema de arte, algo que gera risos, mas principalmente reflete sobre a própria individualidade do autor.

Happy End é sintomático em vários sentidos, talvez um processo ainda muito recorrente e contemporâneo para a cirurgia de Haneke funcionar completamente, provavelmente o cineasta retorne aos temas tocados aqui em suas próximas obras. Todavia, em seu humor um tanto quanto histérico, o diretor faz um filme que funciona conforme sua crítica, mas revela certa descrença de um dos artistas mais amargurados com a sociedade, é preocupante quando um homem como Haneke passa a rir de certas situações.

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