Críticas

Mostra SP | Crítica: Não Devore Meu Coração

Adolescentes mal encarados vestindo camisa de couro e montando em suas motocicletas; crianças investigando mistérios floresta adentro; corpos que surgem nas margens do rio como um grande mistério; uma garota tatuada que parece ser predestinada a alguma missão; pistoleiros empunhando suas armas num ambiente nada civilizado, colocando frente a frente homens brancos e indígenas. Todas essas são imagens solidificadas dentro de um imaginário cinéfilo, a simples descrição delas remete a algum filme ou uma série de obras, e por incrível que pareça todas elas estão presentes em Não Devore Meu Coração.

A receita do peculiar filme brasileiro ainda coloca em pauta a questão da identidade brasileira, em particular aquela que se cria na tensão existente na fronteira entre Brasil e Paraguai, região marcada por conflitos provindos desde a Guerra travada por ali durante o século XIX. Não Devore Meu Coração é um filme que se utiliza desse imaginário cinéfilo para tentar construir e, principalmente, tentar entender relações presentes na constituição de uma identidade nacional, como uma espécie de lacuna que só pode ser preenchida por fantasias.

Escrito e dirigido por Felipe Bragança, Não Devore Meu Coração é uma obra que abraça um realismo fantástico, algo que tomava conta do terceiro ato do primeiro longa do diretor, A Alegria (naquela ocasião em codireção com Marina Meliande, que aqui aparece como produtora). Isso faz com que as imagens evocadas por Bragança falem do Brasil através de uma aura mítica, ou até mesmo utilizando ícones do imaginário pop para explicitar relações que nem mesmo os livros de histórica são capazes de dar conta. Uma estratégia audaciosa para qualquer filme, o que coloca Não Devore Meu Coração numa linha tênue entre o absurdo e uma narrativa madura cinematograficamente.

Nessas operações, o longa faz com que sua narrativa não se torne uma mera reciclagem de repertório audiovisual, tentando encaixar a realidade brasileira em um gênero pré-determinado e suas demais convenções. Não Devore Meu Coração faz o caminho oposto, utiliza-se dessas mais variadas imagens ícones para tentar sua compreensão de uma nacionalidade, como se essas referências fossem armas para tratar desse assunto.

O que ocorre é um modo bastante interessante como o cineasta se apropria dessas imagens cinéfilas, construindo uma narrativa outra, que evidentemente dialoga com o cinema de gênero americano, seja com os filmes de adolescente (O Selvagem da Motocicleta), seja com o faroeste (Era uma Vez no Oeste), ou com as aventuras juvenis oitentista (Os Goonies). Nessa profusão de ícones, Não Devore meu Coração é um filme particular que incorpora os mais diversos elementos, como a utilização da música, o brega em conflito com versões guaranis de clássicos da MPB e com a trilha eletrônica cheia de sintetizadores que remete aos clássicos da sessão da tarde, um filme de muitas ideias audiovisuais.

Não Devore Meu Coração é um longa de extrema autoria, que faz com que essas ideias estejam sob uma ótica muito particular do diretor, é só reparar no trabalho consciente do zoom nos mais variados momentos, trazendo tensão em momentos não dramáticos, evidenciando a apreensão existente no ambiente. Ou, principalmente, a atuação, que se constitui a partir de declamação quase constante, que faz, propositalmente, o espectador lembrar-se da ficcionalização destes fatos.

Dessa forma, se tudo isso constitui um filme extremamente autoral e potente, que cria (a partir de outras) suas próprias imagens ícones, muitas vezes parece que há uma rivalidade entre as ideias, como se elas não pudessem surgir no mesmo filme. Isso faz com que Não Devore Meu Coração possuir uma tensão dentro de sua própria estrutura ficcional, uma obra que se choca por dentro. Isso fica visível na figura magnetizante de Cauã Reymond, o motoqueiro Fernando “dezembro”, praticamente líder de seu grupo, violento por si só e que representa o poder de fogo de uma elite latifundiária brasileira, alguém que já tem sangue indígena em suas próprias mãos, figura que merecia um filme só para si.

Em Não Devore Meu Coração há também a figura do irmão mais novo, apaixonado pela índia tatuada, onde o longa constrói um romance mítico entre garotos que representam coisas tão opostas, ela carregando o sangue nativo, ele herdeiro de um fazendeiro, lados rivais, que querem estar juntos, o garoto entregaria até mesmo sua família e suas armas para tê-la, já ela preservaria sua missão. Mais uma vez, há imagens potentes, tão fortes que clamam por uma narrativa só para si, disputam um espaço e não se conciliam. Até mesmo é difícil ver como participantes de um mesmo mundo, uma vez que Cauã e seu núcleo parecem muito mais velhos que seu irmão, algo não desejado pela narrativa.

Não Devore Meu Coração é um filme de muitos estímulos, de muitas vontades e peculiaridades, todavia esse acúmulo parece causar uma confusão mental, que em certa parte rui com certas pretensões do longa. Até mesmo a declamação constante do longa chega a um momento que parece mais uma busca por certo tipo de cinema, do que algo que pertença aquela obra. Nessa fusão de tantas coisas e informações (muito interessantes diga-se de passagem), parece que Não Devore Meu Coraçãose esquece daquilo que fala, do tema que surge através da fantasia, repleto de bons momentos, o que permanece são suas imagens, aquelas já enraizadas no imaginário cinéfilo.

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