Críticas

Crítica | A Repartição do Tempo

Mesmo tendo a sua história concentrada nos anos 80, A Repartição do Tempo, de Santiago Dellape, acentua assuntos ainda em voga. Parece um filme realizado sob encomenda para exibição na Sessão da Tarde, porém propicia a discussão de temas que eliminam qualquer rastro de frivolidade de sua narrativa.

Em posse de sua mais nova engenhoca com cara de memorabília, Dr. Brasil (Tonico Pereira) chega ao REPI, Registro de Patentes e Invenções, para protocolá-la. O protótipo se trata de uma máquina do tempo, responsável por gerar muitos desdobramentos à história. Após descobrir a funcionalidade da invenção, Lisboa (Eucir de Souza), chefe da repartição, resolve duplicar todos os funcionários, com o intuito de agilizar os serviços prestados, devido à má repercussão dos trabalhos do REPI na imprensa, entretanto Jonas (Edu Moraes), um dos integrantes da equipe, será um oponente à altura, nessa jornada capaz de provar que nem sempre o tempo é cronológico, também pode ser relativo.

Embalado pela ópera O Guarani, de Carlos Gomes, reproduzida em sua abertura e também diariamente no noticiário radiofônico A Voz do Brasil, o filme intima o espectador a já se atentar às várias referências que o permeiam, mostrando-se rico não só por se embrenhar em um universo que flerta com a ficção científica, mas sobretudo por proporcionar a discussão de questões concernentes ao nosso país, dando voz a um humor leve, porém categórico.

A similitude temática com outras obras é evidente, entretanto esse fator pode vir a agradar um público plural, uma vez que o longa agrega desde citações de filmes como Feitiço do Tempo (Groundhog Day, 1993), quando Jonas menciona sobre o Dia da Marmota, até o uso de elementos das histórias do marcante anti-herói Chapolin Colorado, ao ser exibido um roedor com antenas de vinil que detectam a presença do inimigo; fato curioso é que essa frase é dita em rápida aparição de Sérgio Hondjakoff, provido de uma inflexão idêntica a de Cabeção, personagem que encarnava na novela adolescente Malhação. Além das mais diversas referências, a produção também está imbuída em um clima de nostalgia, arrematada com a participação de Dedé Santana na pele de Almeida, um investigador da Polícia Civil, que contribui com uma dose ingênua de seu humor, ao entrar em consonância com o trabalho realizado por mais de três décadas em Os Trapalhões.

Mas não é só em aparições relâmpagos memoráveis que o filme se sustenta, visto que alguns dos personagens que integram a equipe do REPI cativam de imediato. Em virtude de seu jeito malandro e ao mesmo tempo destrambelhado, Zé (André Deca) cria empatia com o público, como na cena em que pede Shirley (Rosanna Viegas) em namoro, sem nem mesmo levar em conta todas as investidas sem êxito pelas quais passou; ao ter que lidar com a resposta negativa é difícil não se apiedar dele, mérito dos bons diálogos que investem em um humor pueril, mas assertivo para esse tipo de personagem.

E se há outra habilidade que merece destaque no roteiro desenvolvido por Davi Mattos e pelo próprio diretor é a preocupação com detalhes, tanto os relacionados à continuidade da narrativa após a duplicação dos empregados da repartição, quanto os ligados a anacronismos que histórias sobre viagem no tempo tendem a sofrer, posto que todos os elementos e objetos de cena que compõem o REPI dialogam com a época pela qual a obra transita.

Entretanto, o virtuosismo exibido em algumas cenas demora para dar as caras, como no caso da edição, realizada pela dupla Marcius Barbieri e Rafael Lobo, ao lado de Dellape, novamente acumulando funções. O trabalho do trio começa a se impor somente nos momentos em que os funcionários estão confinados no que, ao que tudo indica, foi um abrigo nuclear construído por militares durante a Guerra Fria. Em instantes como esse, percebemos a função da montagem como elemento potencializador da função mecânica e repetitiva desenvolvida pelos servidores públicos naquela situação, onde a imagem do carimbo com o termo negado marcado no papel passa a ser recorrente. Além de agigantar o conflito pela dinâmica e agilidade exposta na cena, esse artifício auxilia na crítica aos maus tratos sofridos por essas pessoas, comunicando-se, de certo modo, com a obra Tempos Modernos (Modern Times, 1936), de Charlie Chaplin, que discutia, dentre tantas coisas, o tema em questão no período da Revolução Industrial.

Embora exiba o seu parecer a respeito da desumanização que pode haver no mundo do trabalho ao investir na figura do chefe déspota, o longa busca mesmo promover uma crítica ao funcionarismo público de nosso país, retratado como displicente e desinteressado, aproveitando-se da burocracia para não executar os afazeres que lhe cabem. Ao optar por essa abordagem, Dellape aloca a obra em um plano político, que dialoga com a figura do cidadão comum, vítima dos serviços que deveriam ser prestados por esses funcionários, favorecidos, desde sempre, pelos entraves inerentes ao sistema.

Se o sistema não funciona, ele aprisiona os nossos interesses, assim como os personagens, que se encontram presos quando reféns no abrigo nuclear. A partir daí, os planos criam metáforas com o enclausuramento, dado que a fotografia de André Carvalheira permite que nos aproximemos da ambiência claustrofóbica da tubulação do REPI, ocasião em que Jonas está fugindo e parece clamar pela escapatória tão desejada, momento que promove o encontro entre espectador e personagem, devido ao modus operandi da câmera.

Diante disso, não há como negar que A Repartição do Tempo bebe de outras fontes, gerando assim um acúmulo de referências, porém o filme encontra um norte pelo tom crítico que percorre a sua narrativa, aproximando o espectador ao abordar temas que ecoam na realidade de nosso país.

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