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Crítica | Millennium: A Garota na Teia de Aranha

A trilogia original Millennium, escrita pelo falecido Stieg Larsson, rendeu uma série de filmes na Suécia e um remake norte-americano dirigido por David Fincher. Apesar das diferenças entre as versões, todas elas se desenrolavam com a cadência de um thriller de mistério, com ênfase na investigação minuciosa e protagonistas de carne e osso. Portanto, quem diria que, em 2018, Millennium retornaria como uma espécie de substituta temporária à franquia James Bond? Com direção de Fede Alvarez, do ótimo O Homem nas Trevas, Millenium: A Garota na Teia de Aranha pode não funcionar como mistério, mas entretém como tecno-thriller.

Adaptado do quarto livro da saga, escrito por David Lagercrantz, A Garota na Teia de Aranha não poderia ser uma mudança de rumos mais radical para sua franquia. Servindo de leve reboot ao que já foi apresentado em histórias anteriores, a trama deste capítulo traz Lisbeth Salander (Claire Foy) como uma hacker / vigilante à maneira dos filmes de herói recentes, ainda perturbada psicologicamente mas também altruísta. Chamando a atenção da mídia por sua cruzada contra agressores sexuais e ganhando seu pão com isso, Salander logo se vê diante da situação mais ferrenha que já enfrentou: uma ameaça nuclear. Você não leu errado.

Aqui, os inimigos não são agressores misóginos, e sim uma organização secreta conhecida como “Os Aranhas”, com direito a tatuagens de aranha e seringas de veneno. Quando um programa de ogivas nucleares cai nas mãos de tal organização, a heroína se vê obrigada a encarar um trabalho digno de James Bond ou Ethan Hunt. Contando com a ajuda do antigo parceiro jornalista Mikael Blomkvist (Sverrir Gudnason), ela adentra um submundo completamente diferente do que já está acostumada. A situação se torna ainda mais ardilosa quando Salander descobre que isso tudo remonta a seu passado familiar perturbado, desenterrando memórias da irmã tida como morta – 007 contra Spectre, alguém?

É espantoso como Salander está prontamente equipada para combater um mal de tamanha proporção. Se em histórias anteriores era uma hacker de habilidade sobrehumana, aqui arranha o nível do sobrenatural, manipulando QUALQUER objeto a seu favor com o toque de um botão. Assim como as galhofas noventistas tinham a noção de que hackear se tratava apenas de socar teclas rapidamente em frente ao computador, o filme de Alvarez traz o hacking à era dos games de Watch Dogs, nos quais tudo – tudo mesmo – faz parte de uma grande rede que os jogadores podem controlar remotamente.

Assim, quando Salander hackeia um Lamborghini para fugir de seus perseguidores, não há mais como levar A Garota na Teia de Aranha a sério como um filme da mesma saga Millennium. Resta aceitar a galhofa ou não, porém, por mais eficiente que seja nesta proposta, alguns elementos ficam no caminho desta aceitação. A própria direção de Alvarez, que já se mostrou muito à vontade antes com uma veia trash escatológica, parece indecisa entre emular o estilo solene de David Fincher em Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres ou mergulhar de cara no ridículo – que, a meu ver, é quando Alvarez mais deixa uma impressão, rendendo sequências de ação divertidas como a do sniper ao final.
Algumas dessas cenas, inclusive, são inconsistentes dentro delas mesmas, no que diz respeito à condução de Alvarez. A sequência que introduz o agente na NSA Needham (Lakeith Stanfield), por exemplo, começa com um plano longo, bastante fluido, mas é concluída com uma sucessão de enquadramentos tremidos. O mesmo vale para as demais cenas de ação – que, repito, ainda são divertidas -, melhor roteirizadas do que executadas. No entanto, pode-se dizer que está nascendo um novo candidato para conduzir um filme de James Bond, necessitando apenas de algumas lapidadas para atingir um viço ideal para o trabalho.

Curioso que, no meio de tanta ação muscular, Claire Foy é capaz de convencer com uma entrega naturalista. Sua Lisbeth Salander pode ser superpoderosa e mais palatável que as de Noomi Rapace e Rooney Mara, mas Foy é tão boa que ainda consegue fazer crer que é uma heroína de carne, sangue e osso. Devo admitir que A Garota na Teia de Aranha, ridículo do jeito que é, não funcionaria de jeito algum caso a atriz também não tivesse a oportunidade de exercitar esse lado mais acessível da personagem, que aqui possui um senso de humor seco. Além disso, a naturalidade da atriz permite manter um engajamento com tudo que Salander faz.

O grande problema é a trama no centro de tudo. Além de depender de conveniências e atitudes estúpidas de personagens para caminhar, lembrando os thrillers mais clichês da década de 90, as respostas para o mistério que Lisbeth e Mikael investigam são óbvias ao público desde o início. Depois de um thriller imersivo como Buscando…, que colocava espectador na posição do protagonista, é frustrante saber tão mais do que os próprios personagens, especialmente considerando a fama que os dois tem como investigadores. Difícil acreditar, por exemplo, que Blomkvist é um grande jornalista quando fica encucado sobre um termo que poderia ser facilmente descoberto após uma simples busca no Google.

Millenium: A Garota na Teia de Aranha será mais prejudicado por seu título do que qualquer outra coisa. Embora chame atenção dos espectadores que anseiam pela mesma espécie de thriller metódico dos capítulos anteriores, deve passar batido para o resto do público à procura de um entretenimento mais escapista – irônico, pois é exatamente isso que o filme de Fede Alvarez quer ser. Apesar de não ser um grande acerto, diverte, portanto torço para estar errado quanto às suposições acima e que Lisbeth Salander ganhe o espaço merecido no circuito comercial, mesmo que para isso sacrifique parte de sua identidade e encarne uma versão hacker de James Bond.

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