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Crítica | A Maldição da Freira

O subgênero do terror found-footage continua rendendo alguns projetos promissores entre muitos outros preguiçosos, mas independente da qualidade, o formato acaba quase sempre sendo o ponto fraco. A Maldição da Freira parte de uma premissa bastante instigante para no fim cometer os mesmos erros e sofrer com as mesmas limitações de filmes que são decididamente inferiores: sua exploração da estética de um documentário de época, filmado em 16 milímetros e com formato de tela 4:3, cria uma distinção visual curiosa, mas acaba servindo para empregar os mesmos truques e provocar os mesmos sustos tão vistos em filmes do tipo, levando a um resultado que não é tão ruim como na verdade é apenas genérico.

O longa é ancorado em uma história de mistério apresentada em um pastiche de referências de horror religioso, com estética retrô que dá um clima de terror europeu na moda daqueles produzidos pela Hammer. Na trama, dois padres, um veterano e um novato (interpretados por Lalor Roddy e Ciaran Flynn respectivamente) são encaminhados a um convento na Irlanda para investigar um suposto milagre: a estátua de uma santa que sangra pelos olhos. Documentando cada coisa que veem para comprovar ou não a natureza sobrenatural do acontecimento, os dois passam a descobrir detalhes mais sórdidos envolvendo aquele local e principalmente sua madre superiora (interpretada por Helena Bereen).

Há um bom uso de um contexto histórico verídico da Irlanda, no caso os conventos para mulheres pecadoras – como aqueles retratados em Philomena ou The Magdalene Sisters -, que são isoladas e maltratadas após infrações como relacionamentos extra-conjugais, gravidezes indesejadas e outros motivos. Além disso, há uma construção competente das poucas personagens principais e o posicionamento de cada uma através de diálogos incomumente maduros a uma produção de terror como essa. Ainda de sofisticação pouco vista neste campo, Roddy e Bereen tem entregas naturalistas e elevam os trechos mais verborrágicos, e os dois dominam diferentes cenas com o gravitas que trazem aos diálogos.

Através desses diálogos, vem à tona um mistério pessoal instigante envolvendo o padre mais velho, que passa a suspeitar que os acontecimentos no local estão de alguma forma conectados a seu passado. Isto, porém, é resolvido de maneira decepcionante no fim, quando o longa torna-se um found footage mais convencional e propenso a sustos bastante óbvios – como de praxe, a câmera vira e algo aparece ou algo pula na tela acompanhado de um efeito sonoro alto. É no mínimo decepcionante como o clima antes elegante de terror gótico dá lugar a uma correria desenfreada e nada memorável – embora o longa, numa decisão incompreensível de se “spoilear”, exiba trechos deste final em meio aos créditos iniciais.

Antes de se tornar esse found footage convencional, A Maldição da Freira também promete uma integração interessante dos dispositivos de filmagem daquele período no desenrolar do filme, que de início apresenta planos estáticos, algumas trocas de ângulo atrapalhadas e o som analógico bem abafado. Há até uma autoconsciência de que aquilo é um documentário, ou seja, um retrato manipulado da verdade. Em um dos primeiros trechos, um dos padres, após falar à câmera, começa a sair de cena até parar, voltar ao quadro e perguntar ao outro padre como aquele trecho ficou. Em outros, o padre que opera a câmera grava planos de cobertura dramáticos que contribuam para sua narrativa de denúncia dos horrores daquele convento.

Mesmo que seja obviamente uma obra de ficção, é divertido observar essa tentativa de recriar uma atmosfera de cinema-verdade, com intervenções técnicas e pessoais no meio. Nisso, a direção da irlandesa Aislinn Clarke acerta em cheio, dando uma grande plausibilidade a esses trechos mais mundanos e permitindo uma imersão que também se garante nos diálogos naturais. Caso certas cenas de A Maldição da Freira fossem isoladas e apresentadas a um espectador desavisado, muito provavelmente passariam como um documentário real feito há décadas. Além da mão de Clarke e o elenco convincente, enorme mérito também da fotografia de Ryan Kernaghan, que optou por filmar em um 16mm legítimo ao invés de emular a textura de película.

No entanto, o filme depois perde a coerência do formato escolhido, tanto imagético quanto sonoro. A tecnologia empregada pela cineasta e suas personagens deixa de conversar com a narrativa e dá lugar a uma realização genérica de found-footage. Se antes o padre que opera a câmera demonstrava algumas dificuldades nas trocas de ângulo ou transportar a câmera de um lugar a outro, depois passa a sair por aí gravando com a câmera na mão como se fosse uma handycam portátil – ainda bem que não há zooms mecânicos! Enquanto isso, o desenho de som é típico de um found-footage mas completamente anacrônico com os microfones usados pelos padres, que captam os sons de suas vozes em um mono abafado mas, talvez por milagre, registram o som ambiente com espacialidade 3D e diferentes canais.

Além dessas incoerências, é usada uma trilha não diegética que não faz sentido com a proposta e o término da obra torna tudo ainda mais nonsense – quem teria editado o tal do material “encontrado” e inserido letreiros de contextualização? Sendo questões que até o ruim O Manicômio deu um jeito – bem cabuloso, por sinal – de responder, tudo que há de interessante em A Maldição da Freira acaba esquecido por uma conclusão que vai contra a verossimilhança técnica que Clarke procura a princípio. Aliás, a trilha, que é bem composta, serviria mais ao projeto caso fosse realizado como um longa-metragem convencional. Isso, por fim, nos leva a outra questão: porquê realizá-lo como found-footage? A Maldição da Freira nunca diz a que veio dentro do formato, que no fim serve mais para justificar uma encenação limitada e orçamento modesto, embora tenha uma ou outra boa ideia do que fazer com ele.

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