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Crítica | Mal Nosso

Mal Nosso, do diretor Samuel Galli, é um filme de muitas ideias, algumas muito boas. Na sua proposta de cinema de gênero, é mais audacioso do que se espera, especialmente considerando o pequeno orçamento. Por conta disso, merece respeito. No entanto, a estreia de Galli na direção de longas possui limitações que, mesmo em meio às qualidades, são grandes demais para ignorar.

A curiosa trama tem seu início quando Arthur (Ademir Esteves) contrata o serial killer Charles (Ricardo Casella) para um “serviço” do qual saberemos apenas na metade do longa. Este serviço, no entanto, envolve derramamento de sangue e uma dose inesperada de espiritualismo, levando Mal Nosso a uma direção inusitada que pode surpreender aqueles que só esperam por sanguinolência sem sentido.

A estruturação da trama é estranha, mas válida. Dividida praticamente em dois grandes atos, acaba por apresentar dois filmes completamente diferentes em cada um. No primeiro, o horror torture porn regado à crueldade, e no segundo um drama sobrenatural de pretensões metafísicas. É difícil definir qual funciona mais e qual funciona menos, cada um com seus grandes acertos e também grandes erros.

Enquanto o primeiro possui boas ideias de execução – uma dança amorosa torna-se uma dança da morte – mas tropeça em exageros desnecessários e um trabalho pobre de ambientação, o segundo apresenta conceitos bem mais criativos – não originais – porém é ainda mais prejudicado pelas limitações técnicas – a maquiagem de Rodrigo Aragão, veterano do gore, ao menos deixa uma impressão.

Essa disparidade entre os dois atos pode ser observada nas próprias escolhas de direção de Galli. Se antes ele procurava uma atmosfera sórdida, com bares de strip no fim do mundo – na Augusta, na verdade, o que a design de produção não consegue esconder – e a deep web como um catálogo do mal, depois ele segue um caminho mais contido, do terror atmosférico.

A quebra no tom e na abordagem deveria, em tese, tornar o todo de Mal Nosso em algo mais fascinante, porém reforça a impressão de que há material para dois filmes aqui, talvez dois médias. Ainda assim, este não é o maior pesar do projeto, e sim a direção de atores e diálogos. Não à toa, a introdução deixa uma forte impressão pelo fato de se resolver sem nenhum diálogo verbalizado.

Antes de falar mais, devo dizer que Galli tem um bom olho para escolher seu elenco. Todos eles, especialmente o protagonista Arthur, tem aparências marcantes – o próprio Charles reconhece isso em sua primeira conversa com o cliente. Mas a entrega dos diálogos, que deveria complementar a aparência, é dura, falsa, talvez por falta de experiência das duas partes.

É uma pena, já que nos diálogos se refletem algumas das coisas mais promissoras que Galli traz em seu material. Seu trabalho com a dualidade entre bem e mal é ingênuo, mas no melhor dos sentidos. Embora Mal Nosso se inicie de forma niilista, há sempre um reconhecimento de que Arthur é bom e Charles é o mal incarnado, o que alivia um pouco do gosto amargo da violência direcionada pelo segundo às mulheres.

Talvez de forma acadêmica, os diálogos entre Arthur e sua filha Michele (Luara Pepita) fornecem um contexto crível para a relação dos dois, não fosse novamente a entrega. Há ainda boas ocasiões de humor na simplicidade do texto, como quando Michele diz que “não gosta de sangue, mas de gente”, fazendo um contraste radical com Charles, que diz a Arthur que “odeia gente”.

Na parte visual, as escolhas de Galli são mais ambiciosas, mas também pouco correspondidas pelo orçamento. Além do bar disfarçado de strip club que mencionei, os ambientes domiciliares são básicos e um circo que representa o além tem sua artificialidade entregue pelas luzes sempre em high key, iluminando todas as áreas da tela.

Galli ainda assim investe em algumas simples e boas ideias de execução, às vezes brincando com cinema. É espirituosa, por exemplo, a decisão de usar um pedido de pizza e a chegada da mesma como uma marcação de tempo cinematográfico que delimita o início e o fim do segundo ato. A trilha dos irmãos Garbato, com ar circense, ainda acrescenta à brincadeira.

Mas como todo diretor em início de viagem, Galli tenta se provar e nem sempre tem sucesso. Embora pontual, o registro da violência extrema direcionada às mulheres torna-se desnecessário – já sabemos que Charles é misógino desde o início – e parece incluído quase que por protocolo. Outra montagem afetada em câmera lenta, tentando uma veia Adam Wingard, tem efeito cômico por usar imagens tipicamente caseiras ao som de uma batida dark.

Mal Nosso talvez deixe uma melhor impressão a quem não fala português como primeira língua, como pode se ver na boa recepção do longa em festivais na gringa. Àqueles que esperam uma obra apenas rasteira, também deve superar – e muito – as expectativas. Porém, no fim das contas, as limitações técnicas e cênicas, assim como algumas tendências antiquadas, não fazem jus às melhores intenções da obra, diluindo sua força visceral e narrativa.

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