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Crítica | Suspiria: A Dança do Medo

Em uma das cenas iniciais de Suspiria: A Dança do Medo, remake dirigido por Luca Guadagnino, um ditado emoldurado afirma que “ninguém pode tomar o lugar” de uma mãe. Além de definir grande parte dos sentidos do longa, a afirmação pode atestar, de certo modo, que o filme de Guadagnino não quer de forma alguma tomar o lugar do clássico giallo de Dario Argento. Quaisquer comparações qualitativas entre as duas obras, portanto, não entram em questão.

Este novo Suspiria, roteirizado por David Kajganich (de A Piscina), apresenta a mesma trama original de uma perspectiva, ou melhor, perspectivas bastante frescas. Ainda há a jovem Susie Bannion (Dakota Johnson), que chega à Academia Markos para treinar sua dança, mas desta vez não acompanhamos o mistério apenas através de seus olhos. Entram na mistura um psiquiatra sobrevivente do holocausto nazista, as mulheres que administram a escola e uma força – maligna? – que se apega a Susie.

Kajganich desenvolve tudo isso e uma mitologia sobrenatural complexa dentro do contexto de uma Berlim dividida em plena Guerra Fria, com feridas ainda abertas da grande guerra que assolou o local e sua população apenas décadas antes. Para muitos, Suspiria deve soar excessivo e pretensioso, e isso é compreensível. Só que, neste caso, é a pretensão descabida que o torna em uma tentativa tão interessante de contar essa história novamente, de forma mais extensa – e Guadagnino acerta muito do que tenta.

O ponto mais instigante que este Suspiria aprofunda é a disputa de poder que ocorre dentro da Academia Markos, cujo conselho é constituído de bruxas – algo que o filme deixa claro logo de início. Em um embate que divide as administradoras em dois principais lados, entre manter a bruxa anciã Markos no poder ou conceder o controle da escola para sua aprendiz Madame Blanc (Tilda Swinton), as relações de poder exercidas por elas, outsiders que habitavam o subterrâneo, ironicamente espelha as disputas políticas fora da academia.

A configuração desta batalha interna tem seu propósito reafirmado quando Kajganich cria novas e surpreendentes viradas para a história, dando sentido às sequências de sonho aparentemente aleatórias e culminando em um clímax que, além de satisfatório em sua sanguinolência e cativante na experimentação estética com tons vermelhos e baixa taxa de quadros, oferece uma recompensa lógica para quem já estava montando algumas das peças. É aqui que Suspiria se confirma, sem dúvidas, como uma releitura totalmente despreocupada com a reverência. “Negue sua mãe”, diz Markos, e isso se faz.

O processo de entender e apreciar o novo Suspiria depende, e muito, de uma coerência que se revela entre as muitas ideias estéticas que Luca Guadagnino traz ao projeto. Alguns planos e ângulos desencontrados, que antes soam como descuido do diretor com a decupagem, ganham sentido se associados com a onipresença das bruxas – “elas tem olhos em todos os lugares”. O mesmo vale para o uso de voz over para representar as conversas telepáticas delas – por vezes, antes mesmo de conhecermos tal habilidade, como na votação que ocorre durante um café da manhã.

A atenção de Guadagnino com as regras desse mundo e sua execução por vezes não anunciada destas revela uma disposição do cineasta em brincar com o que esta mitologia lhe oferece, mesmo que custe a paciência do espectador que espera por um explícito e objetivo show de sanguinolência logo de cara. Quando uma certa dança macabra ocorre, com uma mulher que tem o corpo distorcido e cada um de seus ossos quebrados por magia, há pouco o que fazer além de encarar em choque – a repulsa se repete mais vezes mas de forma seleta, o que a torna ainda mais chocante.

A dança, aliás, é um componente vital para o funcionamento de Suspiria como uma máquina de choques viscerais. A ocasião da dança contorcida pode chocar por sua natureza gráfica e escatológica, mas essa e praticamente todas as outras danças são coreografadas e entregues com a mesma agressividade, com planos precisos de partes de corpos e o som acentuado de músculos tensionando, mãos e pés chocando-se contra superfícies diversas. Não se sabe quando ossos se quebrarão novamente. Os muitos cortes da montagem por Walter Fasano, por sua vez, criam uma aflição rítmica.

Para essa dança inquietante, então, a música de Thom Yorke é inestimável. Na ocasião mais comum, o compositor cria melodias inesperadamente belas para uma obra de tais pretensões – a canção Suspirium merecia ao menos uma indicação ao Oscar – e as envolve em uma ambiência macabra, e durante as apresentações e performances é capaz de evocar um estado de transe pela percussão precisamente compassada e uma distorção lisérgica de sons e vocais. As músicas ritualísticas formam, de fato, uma playlist provável para um ritual obscuro – e talvez um pouco hipster.

Porém nem todas as ambições de Guadagnino e Kajganich são correspondidas. A história paralela do psiquiatra Josef Klemperer (interpretado por Tilda Swinton sob maquiagem impressionante) cumpre seu propósito de manter a realidade local em voga, com sua busca conturbada pela esposa desaparecida durante a Segunda Guerra Mundial. Mas Guadagnino busca nessa trama uma emoção catártica – procurada também pela trilha – que não necessariamente atinge, embora o epílogo se dedique quase todo a fechar o arco de Klemperer.

Ainda assim, quaisquer limitações que Suspiria: A Dança do Medo apresenta se devem à admirável tentativa de criar uma nova obra, sem querer melhorar a original e nem incendiar sua reputação. Como se não ficasse claro nas cores acinzentadas, movimentos de câmera frenéticos e cenografia realista em contraste com as imagens saturadas, enquadramentos precisos e atmosfera kitsch do original, o filme de Guadagnino não é uma sucessora nem uma ameaça à mãe original. É, porém, uma alternativa de respeito.

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