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Crítica | Era Uma Vez em Hollywood

Enquanto assistia a Era Uma Vez em Hollywood, o mais novo longa de Quentin Tarantino, recordava ocasionalmente de uma produção que nem mesmo faz parte da mesma mídia ou formato. A websérie Comedians in Cars Getting Coffee, atualmente disponível no serviço Netflix, essencialmente baseia seu apelo em juntar duas personalidades, Jerry Seinfeld e geralmente outro comediante, jogando conversa fora dentro de carros invejáveis enquanto atravessam a cidade em busca de um destino em que possam… jogar mais conversa fora. A meu ver, o aspecto de maior apelo está na movimentação incessante entre os espaços, algo que ocorre com frequência aqui.

Claramente, esta é uma livre associação subjetiva, superficial e momentânea. Porém o cinema de Tarantino se pauta em uma lógica similar, ainda que muito mais aprofundada, de resgate de referências. É neste espírito, inclusive, que canais de TV a cabo exibiram nesta última semana algumas das obras que inspiraram o diretor nesta sua abordagem dos anos finais da década de 60. Aos que tiveram o privilégio de acompanhar a retrospectiva, possíveis associações atuais se converteram quase que imediatamente à raiz da inspiração de Tarantino. A referência de movimentação já não era o programa de Seinfeld, e sim Model Shop, de Jacques Demy, um dos títulos selecionados.

Em um filme cuja premissa não se anuncia com qualquer prontidão, por assim dizer, como nas obras anteriores que estabeleciam seus motes de vingança – Kill Bill, Django Livre – e de mistério – Cães de Aluguel, Os Oito Odiados – mais rapidamente, Tarantino aposta, em boa parte do tempo, na mesma dinâmica que Demy adotou em sua estreia em solo norte-americano, colocando suas personagens para dirigir pela cidade de Los Angeles, aqui ao som de faixas da época e jingles radiofônicos. Era um tempo de transformação, que deixava para trás certas tendências em meio à libertação intelectual, espiritual e sexual – enquanto uns eram descobertos, outros tornavam-se obsoletos.

O espaço da cidade de Los Angeles é explorado em contraponto às angústias das personagens principais, que temem a obsolescência em meio a esse processo transformador. Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), um ator acostumado a encarnar o herói nos bangue-bangues americanos, e Cliff Booth (Brad Pitt), seu fiel dublê e amigo, se veem buscando oportunidades cada vez mais escassas no novo sistema de estúdios. Enquanto Dalton se adapta a contragosto à realidade, entregando o bastão de galã para agora interpretar os vilões coadjuvantes, Booth tenta convencê-lo a aceitar propostas em produções italianas, até porque poderia desfrutar de mais trabalhos como dublê.

Por mais que os arcos de Dalton e Booth permitam que Tarantino brinque dentro de alguns de seus gêneros e formatos preferidos, desde o western spaghetti ao seriado policial do horário nobre, do cinema de gênero norte-americano às produções B italianas, é surpreendente que o diretor trabalhe esta história com um mínimo de autorreferência. Por mais inspirações que tenha, este longa não é mais o puro pastiche de produções anteriores. Claro, Era Uma Vez em Hollywood ainda soa tarantinesco em seus diálogos mais coloridos, mas também há muito silêncio e tempo morto, criando uma experiência meditativa e, por isso, mais imersiva de cinema em pura forma.

Neste filme existem longas sequências que consistem nas personagens dirigindo a um destino, fazendo o que quer que tenham de fazer, e por fim dirigindo de volta para de onde vieram. Este fluxo de carros que atravessam avenidas e vias expressas, assim como os movimentos de câmera impressionantes que os acompanham em alta velocidade e a recriação de fachadas de época, garantem à obra um senso ímpar de lugar, algo que o mencionado Model Shop tinha de sobra. Não há muitas elipses radicais entre cenas na montagem de Fred Raskin, portanto nos locomovemos com as personagens e vivemos seus itinerários.

Da mesma forma, vemos o florescer da carreira de uma certa Sharon Tate (Margot Robbie), que coincidentemente se muda com o recém-esposo Roman Polanski para Cielo Drive, o mesmo CEP de Dalton em Hollywood. Embora não ocupe nem mesmo um terço da duração da obra, o núcleo de Tate é o que dá o norte à mensagem que Tarantino busca desenvolver aqui, que tanto celebra uma era quanto lamenta o encerramento precoce desta, marcado a seu ver pelo destino sofrido por Tate. Subversões de roteiro à parte – evitem os spoilers -, Era Uma Vez em Hollywood é uma obra vivaz mas sempre percorrida por uma sutil melancolia, talvez até uma ansiedade.

Aliado a esse sentimento, o tempo se torna um dispositivo emocional, que no ritmo extremamente deliberado da montagem é capaz de criar efeitos diversos. O momento da visita de Booth ao estúdio abandonado de um velho amigo, agora habitado pelo clã Manson, ganha ares sinistros antes mesmo de uma trilha diegética de suspense invadi-lo através de um televisor, justamente de tão esticado nos silêncios. As interações de Dalton com uma atriz mirim (Julia Butters) e a filmagem de uma longa cena de confronto verbal, por sua vez, externam no silêncio e no descompasso das falas as inseguranças e feridas do ator, que acidentalmente se despe de sua personagem.

A presença de televisores ligados em cenas diversas, por sua vez, favorece uma diegese convincente entre todas as partes da narrativa ao servir tanto como um dispositivo que localiza as personagens em um tempo específico, quando assistem a um mesmo programa de cantos diferentes da cidade, quanto aquilo que abre caminho para que o longa ateste sua autoconsciência como filme. Para o bem e para o mal, a ficção dita a realidade, com a narrativa naturalista que passa a ser invadida pela violência exagerada e uma simples dualidade de heróis e vilões – estes últimos que, não por ironia, atribuem a violência cinematográfica como aquilo que os ensinou a matar.

Ainda assim, nem alguns minutos de sanguinolência extrema ofuscam um filme cuja maior ode é à mudança. Tanto Dalton quanto Booth e a cidade vivem ritos de passagem, que são muito menos o fim que pensam do que um movimento ininterrupto pelos espaços e pelos tempos. E se Tarantino vê esta era como uma que foi infelizmente interrompida, em Era Uma Vez em Hollywood o diretor se dá o privilégio de imaginar que estas duas personagens específicas prorrogaram seu fim, mesmo que por alguma coincidência, e com isso foram capazes de embarcar no bonde e avançar com o resto da sociedade.

Voluntária ou involuntária, a mudança é inevitável e Tarantino, ciente disso, mostra aqui que sua arte também é capaz de mover-se com o tempo, abandonando a simples referência para incorporar um estado de espírito de uma época e um lugar não tão distantes quanto imaginamos. Com Era Uma Vez em Hollywood, o diretor arrisca alienar parte de seu público por não alimentá-lo com versões instantâneas de suas inspirações e ideias, e aqui exige comprometimento com uma obra de duas horas e quarenta que, aos olhos de alguns, pode ser vista como narrativamente escassa. No entanto, aqueles que se entregarem à experiência colherão recompensas muito após o término do longa.

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