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Crítica | Um Lindo Dia na Vizinhança

Todo bom filme é feito com algum grau de intenção. É comum durante o processo de avaliação de cinema e outros meios de entretenimento que surjam críticas e argumentos pura e simplesmente adjetivados, taxando uma obra de “cafona” ou “ridícula” e condenando-a por isso, por exemplo. Embora seja muito possível que um filme peque em suas escolhas de tom, há também os casos em que os mesmos pormenores são vantagens e não limitações – são “features” e não “bugs”, como diriam os programadores.

Entra Marielle Heller e seu Um Lindo Dia na Vizinhança, cujas expectativas apontavam para mais uma cinebiografia de prestígio, mas que subverte o molde totalmente para melhor aproveitar seu objeto de estudo. Assim como Rocketman usou da fantasia para incorporar aspectos da personalidade e obra de Elton John em um esqueleto mais convencional de roteiro, o filme de Heller enquadra seus aspectos básicos sob a estrutura do programa de TV que fez a fama de sua figura central, Fred Rogers (Tom Hanks).

Na prática, esta seria apenas uma adaptação livre e corajosamente afetada do artigo do jornalista Tom Junod sobre Rogers. No entanto, nem Rogers e nem Junod são os protagonistas aqui, e sim o fictício Lloyd Vogel (Matthew Rhys), que tem a missão de elaborar um artigo sobre o apresentador durante um período conturbado de sua vida pessoal. No melhor estilo Sessão da Tarde, o cínico Lloyd, que suspeita da bondade extrema de Rogers, passa a baixar sua guarda e no processo se vê transformado pelo sujeito quase mágico.

Porém é Rogers, até hoje visto com carinho pelos espectadores norte-americanos sortudos por assistirem seu programa semanal Mister Rogers’ Neighborhood em suas infâncias, quem conta ao público esta história, subvertendo em mais outro nível a perspectiva da obra baseada em fatos. Diversas vinhetas pontuam o longa e seguem o formato do programa televisivo, replicando inclusive a estética de monitor de tubo antigo e cruzando de forma criativa com a história sóbria no miolo.

Se inicialmente este choque do tom lúdico das vinhetas apresentadas por Hanks com a melancolia das cenas “reais” causa algum estranhamento, a decisão não só se prova como o objetivo da obra como é fortalecida pelas justaposições cada vez mais frequentes dos elementos oníricos com outros realistas. A certa altura, Um Lindo Dia na Vizinhança proporciona até mesmo múltiplas camadas de sonhos e alucinações, sem medo de perder credibilidade no processo – até porque não há associação entre sisudez e veracidade.

O comprometimento de Heller com esse ludismo cafona mas charmoso é bem defendido pela própria construção que os roteiristas Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue fazem da figura de Fred Rogers. Segundos antes do primeiro contato de Lloyd com o apresentador, este último se propõe, diante das câmeras, a montar uma barraca de acampamento. A tarefa se mostra mais desafiadora que o esperado, e Rogers gasta boa parte de um minuto tentando armar a barraca sem sucesso.

Ao assistir o material, Rogers vê na sua tentativa desajeitada algo mais interessante do que o que estava planejado, abraçando de imediato a cafonice do material acima de um resultado mais quadrado. Fred Rogers, então, fica representado como um paladino sem vaidades, de forma igualmente cômica e verdadeira, o que é uma escolha novamente consciente: nós, assim como Lloyd, devemos também torcer nossos narizes para que acompanhemos sua desconstrução na mesma medida.

Com a guarda baixa, incluindo a nossa, começa a aceitação dos dramas de Lloyd pelo que eles são: comuns. O tom meio novelesco de antes perde a carga de cinismo, reproduzindo com honestidade a transformação interna do jornalista. A abertura às reflexões sacarinas propostas por Rogers tem seu próprio tipo de recompensa, caso compreendidas de um outro olhar, e este é o exercício que Heller propõe: enxergar o mundo com novos olhos – a escolha de miniaturas para planos ambientes é brilhante nesse sentido.

No fim das contas, tudo isso passa pelas interpretações meticulosas de Tom Hanks e Matthew Rhys, que formam uma díade – espera, onde já ouvi isso? – entre o altruísmo quase condescendente de Rogers e o cinismo distanciado de Vogel, ambos sugerindo em seus olhares uma humanidade além dos arquétipos aos quais seriam reduzidos em outro filme. A condução de Heller de seus diálogos valoriza o tempo de reação e reflexão dos atores, mais pensando no impacto de um sobre o outro em seus diálogos – isso ocorre mesmo em momentos de silêncio, como na magnífica cena do fantoche no estúdio.

Portanto, as escolhas de Heller são nada menos que justas. Um Lindo Dia na Vizinhança trata do impacto das boas ações, de uma boa conversa, não importando a cafonice disso desde que haja sinceridade. E assim como Fred Rogers, o filme certifica-se de que sairemos da sala de cinema ao menos um pouco comovidos e reflexivos sobre o que é sentir compaixão e como qualquer um pode ser um melhor vizinho.

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