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Demolidor | Crítica - 3ª Temporada

CONTÉM SPOILERS

Uma das questões inerentes a qualquer filme, série, ou quadrinho de super-herói é a necessidade desses personagens dentro do mundo no qual estão inseridos. Não estamos falando de obras que se passam no Velho Oeste, ou algo assim, onde a lei é praticamente inexistente e sim de histórias situadas em realidades próximas às nossas, que, portanto, geram a pergunta: todo esse problema não poderia ser resolvido pelas autoridades normais? No caso do Demolidor há ainda o agravante de Matt Murdock ser advogado, alguém que justamente deveria seguir a lei à risca, o que invariavelmente se contradiz com suas pancadarias noturnas com os bandidos. Felizmente, toda essa problemática não escapa da Netflix em sua série sobre o personagem da Marvel.

Obviamente, se estivéssemos falando de super-vilões, ameaças alienígenas, ou algo assim, é claro que super-heróis seriam bem-vindos. Mas não é sobre isso que estamos falando no caso do Demolidor. Assim como muitas das melhores histórias em quadrinhos, vemos aqui – ao menos nessa terceira temporada, que não envolve ninjas imortais – algo mais pé no chão, a luta de um homem contra seus demônios internos e, claro, contra Wilson Fisk, o Rei do Crime.

Toda o embate entre o vigilantismo e o heroísmo, aliás, ganha ainda mais profundidade pelo simples fato de Murdock ser um homem bastante religioso. Seu catolicismo é o que o mantém de matar qualquer outro ser humano – algo nada fora do comum quando se trata de super-heróis, mas que aqui ganha ainda mais fundamento em razão do pecado. Sabendo explorar tudo isso, fica fácil enxergar por que essa terceira temporada da série da Netflix facilmente se configura como a melhor das três lançadas até agora.

Esse lado religioso do personagem é o que dá o pontapé inicial desse ano de Demolidor. Sofrendo com a perda de Elektra, Matt culpa não apenas a si mesmo, como a Deus, que deveria ser piedoso, mas permitiu que seus amados fossem colocados em perigo. E que melhor lugar para lidar com isso do que o orfanato onde Murdock viveu por grande parte de sua vida? Aos cuidados da Irmã Maggie, o protagonista se regenera não apenas em corpo, como em alma, questionando a necessidade da existência tanto do Demolidor, quanto de si mesmo.

Enquanto isso, a ameaça de Wilson Fisk vai crescendo mais e mais, com o criminoso assegurando um acordo com o FBI para se livrar da prisão, sendo movido para um hotel, onde colabora com as autoridades, entregando outros líderes criminosos. Obviamente isso não acaba bem e pouco a pouco a série vai nos mostrando até onde o poder de Fisk se estende, alcançando proporções assustadoras, que elevam a tensão do espectador exponencialmente.

Toda essa escalada, o aumento da sensação de urgência vai cuidadosamente sendo construída com o decorrer dos episódios, explodindo já na primeira metade da temporada, que nos entrega o que é, sem dúvidas, a melhor cena de ação da série, filmada inteiramente em plano sequência, sendo capaz de superar a emblemática luta no corredor da primeira temporada. Nesse ponto é que percebemos, com total consciência: o risco pelo qual passa Matt, Foggy, Karen e outros personagens é imenso. Com isso, é importante notar como a violência mais gráfica é usada justamente para solidificar essa sensação – vemos mortes inesperadas de inocentes a todo momento, a tal ponto que praticamente imploramos para que algo dê certo – mas, como o próprio Murdock diz, o Rei do Crime sempre está cinco passos a frente de todo o resto.

É curioso notar, porém, como o novo showrunner, Erik Oleson, entende que sequências de ação a todo e qualquer momento não são necessárias para fazer uma boa série de heróis. Na mesma linha do que Christopher Nolan fez em sua trilogia do Batman – especialmente em O Cavaleiro das Trevas – o que vemos aqui é um drama, que, por acaso, tem super-heróis e não o contrário. Boa prova disso é como capítulos praticamente sem qualquer ação funcionam plenamente, apostando quase que exclusivamente no suspense, na construção de personagens, nos seus dilemas e seus relacionamentos. O risco, não se engane, sempre está lá, mas ele não precisa ser confrontado repetidas vezes em um curto período de tempo.

Essa boa dosagem, diria até prevalência do drama sobre a ação, permite a inesperada construção de personagens secundários que jamais esperaríamos ganhar tanta atenção em uma produção do subgênero. O foco no agente Ray Nadeem é a prova mais concreta disso. Todo o seu arco é sincero, bem construído e realmente é capaz de fisgar nossa atenção, mas sem ocupar, jamais, mais tempo do que o necessário. Claro que Oleson acaba errando a mão ao inserir um capítulo exclusivo de Karen Page, totalmente desconexo da história central, mas nada que estrague a temporada por completo. Aqui devo dizer, foi ótimo ter conhecido mais da personagem de Deborah Ann Woll, mas poderíamos ter visto mais disso através de curtos flashbacks ao longo de um ou mais capítulos, similarmente ao que foi feito com a irmã Maggie, após a surpreendente – e muito bem-vinda – revelação, que pega todos de surpresa.

Outro bom exemplo de como o showrunner entende como deve construir seus personagens, é o caso de Benjamin Poindexter, o Demolidor falso e futuro Mercenário. Sua história, de início, é envolta em mistério e rapidamente assume um viés mais perturbador, com ênfase no lado psicológico do antagonista. Tudo isso permite não apenas que conheçamos, nos importemos, com o personagem, como possibilita que entendamos o porquê dele estar fazendo aquilo. Com isso, sua entrada triunfal, como verdadeiro vilão, se torna ainda mais impactante. Aliás, aqui vemos um ótimo uso da violência gráfica, que é capaz de fazer o que muitos filmes por aí não conseguem: mostrar que o vilão realmente é perigoso e pode matar o protagonista. Parte dos créditos vai, claro, para Wilson Bethel, que interpreta o personagem de forma envolvente, jamais nos fazendo duvidar da instabilidade psicológica e emocional do antagonista.

É importante ressaltar, no entanto, como Oleson não permite que Poindexter acabe roubando o palco do Wilson Fisk de Vincent D’Onofrio, que permanece um dos melhores vilões de todas as recentes produções da Marvel. Embora já tenha sido amplamente explorado na primeira temporada, o Rei do Crime não deixa de nos surpreender e, agora, vemos uma abordagem diretamente inspirada no cenário político atual – algo confirmado pelo showrunner recentemente. Fisk representa a verdadeira ameaça à democracia e à liberdade, tomando controle de instituições governamentais, ampliando seu poder através do controle do FBI e, acima de tudo, desacreditando a mídia, tirando a voz do povo e, portanto, se tornando praticamente imune a qualquer investida contra ele.

Com isso em mente, voltamos àquela questão inicial, sobre a necessidade da figura do super-herói. Dentro desse cenário assustador, em que o criminoso tomou controle de praticamente tudo – e a série deixa bem claro que Fisk realmente é extremamente poderoso – o Demolidor imediatamente se torna a única possível salvação. Oleson, contudo, mantém o discurso da primeira temporada e faz do herói uma forma de possibilitar que a justiça siga seu curso normal. Em outras palavras, ele desobstruiu o caminho a ser seguido pelas nossas instituições do “mundo real”. Naturalmente, a própria atividade de Matt como advogado – finalmente junto de Foggy e Karen novamente – se mantenha relevante.

Dito isso, não é difícil enxergar como essa terceira temporada de Demolidor se configura como um verdadeiro triunfo da Netflix/ Marvel. Sob comando do novo showrunner, Erik Oleson, a série acerta em praticamente tudo, com breves percalços que, de forma alguma, prejudicam nosso aproveitamento da série. Sabendo construir os personagens e dosar muito bem o ritmo, com mais foco no drama do que na ação propriamente dita (ainda que essa ainda esteja presente e em boa quantidade), o seriado realmente foi capaz de nos surpreender. Já nos deixando ansiosos pelo próximo ano, especialmente após aquele cliffhanger. O demônio que conhecemos está de volta e ele nunca esteve tão em forma.

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