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Black Mirror: Bandersnatch | Crítica

Com Black MIrror, Charlie Brooker conseguiu estabelecer seu legado na televisão, mostrando que o conceito antológico de séries clássicas como “Além da Imaginação” poderia ser explorado com ainda mais flexibilidade do que poderia se imaginar. Black Mirror: Bandersnatch é apenas mais uma prova de que ainda temos muito o que descobrir sobre o potencial do entretenimento moderno.

Quer deixar um aficionado por séries em estado de constante ansiedade? Basta tirar a barra de duração do episódio, e veja como faz falta ter a sensação de controle sobre o que está sendo consumido. Black MIrror: Bandersnatch aproveita o espaço que um serviço como a Netflix lhe proporciona, e altera a maneira como o espectador deve assistir ao episódio de jeitos que dificilmente poderiam ser implementados meros cinco anos atrás. Felizmente, toda a dinâmica é construída em função do tema que está abordado pela história, mesmo que a execução de tal história não esteja livre de equívocos.

O episódio (que também está sendo chamado de um “evento Black Mirror”) acompanha um jovem programador que resolve transpor uma aventura escrita, com todas as suas múltiplas escolhas, para um jogo virtual igualmente flexível. Obcecado pelas realizações do escritor original desta aventura, o jovem Stefan (Fionn Whitehead) começa a refletir sobre os mesmos dilemas e paradoxos que aparentemente atormentaram seu ídolo, girando em torno de questões que abordam o embate entre o “livre-arbítrio” e um suposto “destino premeditado”.

Colin (Will Poulter), outro brilhante jovem programador, é quem elucida estes questionamentos para o protagonista, em uma cena onde ambos usam LSD para “expandir suas mentes” e apresentam ao espectador, seu primeiro grande dilema moral. A cena é, aparentemente, constante em todas as “versões” do episódio que estão sendo relatadas por espectadores, muito provavelmente por ser um ponto de virada essencial para que a história possa se desenvolver livre de qualquer amarra imposta pela necessidade de coerência.

Uma vez que aceitamos o contexto “surreal” abraçado pela trama, esta se desenrola com cada vez menos nexo, e cada vez mais como uma experiência repleta de entusiasmo. Se a própria realidade do protagonista é questionada, e a típica relação de causa-e-consequência não possui mais a mesma relevância para a narrativa, então qual o sentido de se prosseguir com a trama que havia sido construída? Sendo assim, o episódio desemboca em uma gama de “cenários alternativos” e recursos metalinguísticos que parecem mais interessados em deslumbrar o espectador, do que realmente contar uma história.

Jogos de RPG constantemente encontram este mesmo obstáculo em seus desenvolvimentos. Como ceder o controle da narrativa ao jogador, ao mesmo tempo em que se constrói uma trama gratificante? As consequências para cada ação precisam soar orgânicas o suficiente para que o jogador não se sinta direcionado ou impotente, mas também não podem trair o raciocínio que vinha sendo construído, até então.

Com modesta originalidade, Black Mirror: Bandersnatch se propõe a contornar estes empecilhos posicionando o espectador como um personagem próprio (um amigo do futuro que está vendo Netflix, ao menos na versão que tive), com o protagonista tendo a realização de que está sendo “controlado”.

Se por um lado, esta realização escancara a narrativa, e abre o espaço para a divertida exploração de possibilidades que o espectador é encorajado a abraçar, por outro, nunca deixa de se manter dentro do imaginário de uma possível (provável) paranóia desenvolvida pelo protagonista, caminhando com passos de elefante pela linha tênue que compõe a quebra da quarta parede.

È importante compreender que outras “versões” deste episódio especial poderiam ter avaliações mais positivas ou negativas, dependendo da experiência final de cada espectador. Enquanto alguns trajetos podem apresentar uma consistência mais engajante na maneira como a trama se desenvolve, e o protagonista evolui, outros podem se tornar ainda mais dispersos e intrigantes sob uma perspectiva muito mais interessada no funcionamento desta experiência, e no mapeamento de seus desdobramentos (nem que seja por mera curiosidade do espectador).

Discrepante, com certeza, Black Mirror: Bandersnatch consolida o potencial que estas experiências interativas possuem no cenário televisivo atual. Talvez se salve de tantas armadilhas que o modelo apresenta, justamente por integrá-lo à sua trama descaradamente, mas nunca aliena o espectador ou deixa que a narrativa se torna irrelevante. É um trabalho de equilíbrio entre o controle e a passividade (sempre considerada essencial para se definir um espectador) que, por si só, já merece a atenção do público.

Anseio, então, por uma nova história que consiga trazer um equilíbrio tão envolvente quanto foi visto aqui, mas que também consiga se desenvolver através da metalinguagem, ao invés de destacá-la (nem mesmo reconhecê-la). Aí sim, estaremos em um território onde o mercado televisivo poderá ser alterado permanentemente, e Charlie Brooker com certeza se sentirá como uma criança em parque de diversões.

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