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Special | Crítica - 1ª Temporada

Provando, mais uma vez, a produtividade de perspectivas normalmente ignoradas pela mídia casual, Special consegue ser uma comédia bem equilibrada que aborda suas questões sociais de forma acessível e confortável.

Special é baseada no livro “I´m Special: And Other Lies we Tell Ourselves” (Eu sou especial: E Outras mentiras que contamos para nós mesmos), escrito por Ryan O’Connell, que também assina o roteiro e a produção da série, além de interpretar o protagonista. Jim Parsons, o Sheldon de The Big Bang Theory, também está entre os produtores executivos da produção, o que pode ter ajudado a chamar a atenção da Netflix para esta série peculiar sobre um jovem com um baixo de grau de paralisia cerebral. Além de lidar com os obstáculos de sua condição, Ryan também é gay, proporcionando algumas comparações interessantes entre os dois “armários” que o personagem precisa encarar.

Special foge de padrões estruturais comuns ao gênero, trazendo oito episódios de durações variadas, todos com menos do que os habituais vinte minutos de um comédia americana tradicional. A curta duração, no entanto, não é utilizada para compor tramas mais contidas, como se percebe em diversas outras produções que desafiam moldes de estrutura episódica. A série, na verdade, transcorre como uma comédia comum em diversos pontos, e poderia perfeitamente ser adaptada (ou incrementada) para alcançar os tradicionais vinte minutos. É curioso, no entanto, notar como Special constrói suas tramas de maneiras perfeitamente satisfatórias e engajantes no tempo em que se propõe.

Sem tempo para mais, acompanhamos duas tramas durante a série. Ryan, com sua trajetória dentro de um novo emprego para um blog de rotinas e auto-ajuda, e sua mãe, Karen (Jessica Hatcht), que está tendo dificuldades em lidar com a almejada independência do filho. Logo no primeiro episódio, Ryan acaba escondendo sua paralisia cerebral, deixando que os colegas de trabalho acreditem que suas dificuldades motoras são um resultado de um atropelamento recente. Vale ressaltar, um personagem gay se manter no “armário” por conta de outro aspecto totalmente não relacionado, é uma das ironias que produções modernas estão buscando explorar com mais liberdades do que na década passada, e que costumam trazer particularidades revigorantes para o espectador.

Special é uma série que quer aproveitar sua perspectiva incomum para brincar com conceitos do “politicamente correto” de um jeito extremamente relevante para o cenário cômico atual. Speechless, outra série também sobre um jovem com paralisia cerebral, já havia demonstrado que há um grande potencial cômico nesta disposição, que só poderia ser explorada por alguém que sabe do que está falando. Mas enquanto Speechless é uma sitcom tradicional da TV aberta americana, Special tem um tom mais autoral em sua narrativa, e Ryan O’Connell aproveita a liberdade criativa de uma plataforma como a Netflix para construir seu personagem da forma como bem entende.

É comum que personagens como Ryan sejam definidos, dentro da trama, por sua condição, com toda e qualquer construção ou evolução girando em torno deste aspecto. A relevância de uma série como Special está justamente na intenção do roteiro de construir Ryan como um personagem mais profundo do que apenas sua paralisia cerebral. Speechless introduz esta ideia apresentando seu protagonista, JJ, como um adolescente arteiro e desinibido, enquanto Special coloca Ryan no centro de situações comuns à qualquer jovem adulto, e expõe suas inseguranças e instintos, tão comuns quanto a qualquer outro personagem com a mesma idade.

Inclusive, senti falta de uma maior exploração, e consequentes paralelos com a personagem Kim (Panum Patel). A jovem redatora de sucesso fez sua carreira em cima de discursar sobre o amor-próprio e a aceitação, mas logo percebemos que há uma maior complexidade em sua atitude, e na maneira como é interpretada por seus leitores. Sinto que, caso a série fosse obrigada a preencher os habituais vinte minutos de comédias americanas, seria Kim que ficaria com o tempo extra, em construções de maiores tramas próprias para a personagem. Ao meu ver, a abordagem seria apenas benéfica para a série, e torço para que uma futura temporada possa dividir mais sua atenção, e aprofundar a relação da personagem com Ryan.

O humor de Special procura ser pungente, no que diz respeito ao “politicamente correto” e a retratação de momentos mais desconfortáveis como a cena em que Ryan perde sua virgindade. Ao mesmo tempo, tratando tais momentos e questões de forma descompromissada, a série consegue atingir um tom cômico perfeitamente cômodo e convidativo, sem grandes discursos afrontosos ou interpretações mais complexas. É, basicamente, a típica história de um jovem adulto “millennial” que quer alcançar sua independência ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, quer ser compreendido pelos demais (se isso não é fácil de se identificar para a nossa geração, como um todo, eu não sei o que é).

A mãe de Ryan, no entanto, é quem traz um pouco mais de profundidade para as questões tratadas pela série. Com o jovem se mudando para o próprio apartamento, Karen retoma uma exploração de sua vida amorosa, se interessando por um charmoso e aventureiro vizinho, e expondo traços negativos da personalidade de Ryan, inicialmente incomodado com a mudança de hábito. Ao mesmo tempo, nós percebemos os dilemas de uma mãe que sempre viveu em função de outra pessoa, e sua dificuldade para re-equilibrar suas prioridades. Com o curto tempo da série, e o tom cômico confortável que citei anteriormente, não há muito espaço para grandes reflexões, mas serve como uma introdução eficiente para o tópico, que deve voltar a ser explorado em continuações.

Special não quer ser tão transgressora, quanto quer ser apenas um retrato relevante por conta de sua diversidade. Competente ao envolver o espectador em suas simples narrativas, e com personagens carismáticos, fáceis de se identificar e acompanhar, a série acaba sendo uma produção especial, sem se apoiar em nada de especial. Ryan O’Connell demonstra que tem intenções bem claras em sua interpretação e em seu texto, e trata seu personagem com uma naturalidade cativante, capaz de manter qualquer espectador casual, mais do que disposto a consumir estes curtos oito episódios, e provavelmente, ansiar por uma nova temporada.

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