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Sintonia | Crítica - 1ª Temporada

Mais uma série nacional chega ao acervo da Netflix. Desta vez, o aclamado produtor videoclipes, Kondzilla, traz a sua visão e estética em Sintonia, e o resultado não só é majoritariamente positivo, como reforça a necessidade de se valorizar a diversidade criativa na ficção.

 Sintonia se propõe a entregar uma visão parcial sobre um universo que costuma ser retratado na ficção por uma perspectiva exterior. Desde o sucesso internacional de Cidade de Deus, o público e a crítica foram se familiarizando cada vez mais com clichês e convenções que normalmente permeiam produções voltadas para temas como a rotina da favela, o sistema do tráfico e a desigualdade social. Nota-se que este último item costuma ser bem presente em diversas obras, justamente pela perspectiva de produtores que geralmente estão se dispondo a refletir sobre a situação, analisando-a de suas posições distanciadas e tentando adotar uma maior abrangência em seus argumentos. 

Na nova produção da Netflix, já é possível perceber uma diferença crucial nesta questão de perspectiva. Sintonia não está tentando jogar o holofote de fora para dentro em seu universo, mas sim, tentando ser escutada de dentro para fora. Tal interpretação seria condizente com a própria trajetória que se mantém constante entre os três protagonistas, com Doni (Jottapê), Rita (Bruna Mascarenhas) e Nando (Christian Malheiros) tentando encontrar seus respectivos caminhos e vozes para serem ouvidos (há se discutir aqui uma noção de relevância e de propósito, que poderia se manter como um ponto mais amplo desta história, ao longo de várias temporadas).

Tal perspectiva também resulta em um retrato mais próximo de uma realidade que, embora seja perfeitamente reconhecível e familiar, também carrega um sentimento de deslumbre por parte da narrativa. Enquanto outras obras podem retratar estes cenários com uma abordagem visual mais “crua” e “realista”, Sintonia varia entre ser pragmática e sentimental na maneira como resolve construir sua atmosfera. Inclusive, observando algumas imagens promocionais da produção, eu esperaria uma dose maior de excentricidade que, embora pudesse ser produtiva, talvez minasse os efeitos da naturalidade que a série, também, tanto almeja proporcionar. 

Essa naturalidade acaba sendo bem representada, principalmente, por conta da representação dialética deste universo. As gírias e maneirismos não soam como elementos forçados nos diálogos destes personagens. Não há uma tentativa de higienizar estas falas, com algumas interações até repetindo palavras e expressões de forma orgânica, por exemplo. Percebe-se, portanto, um trabalho digno de atenção da roteirização destas interações, e da maneira como foram interpretadas para fora da página com flexibilidade (torço para a velha discussão sobre a plasticidade de diálogos nacionais possa dar mais um passo ponderando exemplos como este). 

A direção de Kondzilla e Johnny Araújo é consistente, plenamente digna de ser comparada com os padrões televisivos da TV a cabo americana. Mais do isso, também mantém alguns aspectos que já começam a compor uma identidade moderna cada vez mais reconhecível na produção nacional. Mas considerando a experiência do produtor com videoclipes, senti falta de montagens e sequências mais expressivas (entusiasmadas, talvez) que pudessem tornar Sintonia uma série tão chamativa quanto outras produções que aproveitam ambientes musicais para suas histórias. 

Vamos a narrativa, então. Os três protagonistas possuem personalidades distintas e atraentes de se acompanhar, bem como a relação afetuosa do grupo ajuda a tornar esta história mais envolvente. A amizade que vem desde a infância está sempre presente, mantendo as tramas interligadas e se complementando, nem que seja por meio de meras mensagens de texto ocasionais. A maneira como Sintonia consegue equilibrar o foco destas três linhas narrativas de forma engajante é, com certeza, um dos maiores méritos da série, e uma importante razão para acreditar que a produção pode ser consumida internacionalmente sem muitos problemas. 

Doni fica responsável por trazer a tona as representações do universo do funk, que é um dos pontos principais do marketing da série. O comportamento do personagem consegue desviar de alguns típicos clichês normalmente atribuídos ao “aspirante a músico”, com sua personalidade jovem sendo confortável de acompanhar. Esta primeira temporada, no entanto, pareceu mais interessada em explorar o interior da indústria do funk, do que os conceitos e estímulos da música em si (um potencial que realmente espero que seja melhor explorado no futuro). 

Rita fica com algumas das cenas mais introspectivas, e acaba servindo como um contraste produtivo para os outros dois amigos. É válido notar que sua trajetória envolvendo a religião evangélica também procura escapar de clichês contemporâneos. Neste caso, o espectador ainda pode sentir um certo questionamento sobre o sistema de capitalização da fé, mas o real foco está na busca da personagem por uma espécie de redenção, e uma sensação de pertencimento que pode acabar colocando-a em posição de confronto com as suas raízes. Abre-se, portanto, uma discussão relevante para o universo da série sobre o espaço da religião, que vai além das interpretações políticas atuais.  

E por sua vez, Nando fico com a função de explorar o mundo do tráfico, e os ambientes que costumam ser retratados de forma chocante ou provocativa em produções semelhantes. A maneira como a escrita deste personagem tenta se distanciar da mesmice é através de uma construção mais emocionante, que carrega uma parte do deslumbre que citei anteriormente. Não estou falando de admiração, mas sim de um destaque da atmosfera de tensão que é construída em cada reunião de membros (e o fato de só escutarmos a voz do líder, sem nunca ver o personagem, contribui para esta abordagem). 

Todos os três protagonistas são interpretados de forma notável pelos jovens atores, que parecem compreender a posição descontraída de seus textos e conseguem transparecer o crescimento de seus personagens, apesar dos poucos episódios. 

Sendo assim, Sintonia pode estar perdendo algumas oportunidades de explorar certos pontos de seu universo com mais determinação e abrangência, bem como esta primeira temporada acaba passando a sensação de entregar apenas o começo de uma história. Mas desde de suas construções narrativas até a execução de sua particular perspectiva, a série se mostra repleta de potencial para se tornar um excelente representante de expressão nacional, dentro da Netflix. 

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