Críticas

Crítica | Blade Runner 2049

Mais de trinta anos se passaram entre o clássico oitentista sci-fi e a sua sequência. Esse também é o tempo diegético que separa a missão do caçador de androide Rick Deckard (Harrison Ford) e do oficial K (Ryan Gosling), uma proposital coincidência que faz pensar o que teria ocorrido naquele futuro distópico após os acontecimentos do primeiro filme. Blade Runner 2049 parece ter nascido, sobretudo, dessa indagação, desse pensamento acerca do mundo que foi criado no remoto ano de 1982.

Assim, o novo Blade Runner surge com uma característica muito particular de seu primeiro criador: Ridley Scott, um cineasta que sempre gostou de ser reconhecido como um criador de mundos, de realidades distintas àquilo que é real (ainda que como diretor ele tenha se saído muito bem em obras bastante realistas). Aqui, em 2017 ou 2049, Dennis Villeneuve (A Chegada) é responsável por ampliar esse horizonte, por oferecer algo além do que já foi visto naquele futuro passado. Se Scott foi um criador de mundo, Villeneuve tem que solidificar um universo e todas suas mudanças.

Para ser sincero, parece que o diretor canadense compreendeu completamente aquela frase de Ridley Soctt, entendendo que a força do primeiro Blade Runner estava justamente numa concepção visual, um mundo imediatamente identificável. Em 1982, Scott foi responsável por produzir um ícone, uma imagem que caracterizou e caracteriza a ficção científica até hoje, uma espécie de roupagem que traduz todo um mundo do gênero. É a partir disso que Villeneuve realiza seu trabalho, partindo desse pensamento sem almejar apenas replicar essa concepção visual, não aderindo ao neon noir do primeiro filme apenas por uma satisfação nostálgica, mas buscando destrincha-lo para realizar seu próprio universo.

Talvez, nessas mais de três décadas de hiato, existam filmes mais devotos ao visual do longa de 1989 do que o próprio Blade Runner 2049, algo que pode ser decepcionante para alguém que busca apenas uma reciclagem do original. É nesse sentido que a obra pode ser entendida, partindo dos acontecimentos e do visual do original para compor um novo quadro, elevando ideias que já existiam ali. 30 anos depois, o mundo segue em perigo, os caçadores de androide buscam os Replicantes de uma fase antiga, enquanto uma nova safra obediente garante o funcionamento da sociedade. K é um desses e garante que essa ordem seja mantida, no entanto, é oficial que desenterra um segredo do passado (daquela época do primeiro filme), colocando toda sua crença em cheque, até mesmo sua condição como um mero replicante.

Nesse novo mundo de Blade Runner 2049, Niander Wallace (Jared Leto) comanda a criação desses novos androides, tendo total interesse no desaparecimento daquela geração antiga. O empresário, ou dono daquele futuro, está atrás do mesmo segredo de K. Nessa mitologia revelada, entre uma e outra investigação, ocorreu um blackout, que apagou todos os registros antecedentes ao período de 2020. Blade Runner 2049 é um filme sobre essa falta de registro, sobre um código perdido que confunde quase que permanente aquilo que é real daquilo que é artificial. Uma imagem que falta para ser possível delimitar o biológico do construído.

O longa assume um tom de mistério constante, como se tudo fosse passível dessa desconfiança, um mundo constituído de imagens que não se pode acreditar, ou ao menos decodifica-las. Essa questão constante é o grande centro do filme, fazendo com que nunca se entenda a verdadeira relação entre o fabricado e a busca pela verdade daquele personagem. É como se K estivesse em busca do real em um lugar baseado num padrão pré-estabelecido e construído. Essa descrença na verdade pauta a estética de Blade Runner 2049, um filme repleto de telas que muitas vezes não podem ser identificadas. Como num pequeno plano no início do filme, em que Sasper (Dave Batista) está entrando em sua casa, e um cômodo é separado de outro apenas por um mosqueteiro, uma tela, dando sensação que a imagem daquele homem está de fato projetada em algo, caracterizando aquela figura como algo irreal. Após esse plano, K indaga se aquele homem é um replicante, um ser artificial.

A fotografia de Roger Deakins está inserida na mesma lógica, aqui até o constante esteticismo do fotógrafo faz sentido. Como se aquele mundo de 2049 sempre possuísse uma luz controlada, uma iluminação que abre espaço para essa estética sempre bela, um artificialismo constante. Basta reparar no edifício de Wallace, uma espécie de pirâmide que emana uma luz parecida com a do sol, revelando o desejo daquele personagem por recriar um mundo real, mas é o artificialismo que dá a tônica daquele ambiente, com uma espécie de sol recriado.

É nessa sensação que Villeneuve desenha a sequência mais interessante do longa, o encontro entre Deckard e K. Algo que ocorre numa Las Vegas devastada, cheia de radiação, um ambiente intocado por aquele mundo que se apresenta. Entre escombros de uma cidade real, o jovem oficial, imerso no mundo da artificialidade, vai ao encontro de um personagem provindo de outro tempo, ainda conectado com a realidade, e isso se dá no meio da cidade das ilusões que hoje é Las Vegas. Ambientes que reproduzem essa falsidade construída, onde os seres de Blade Runner 2049 estão completamente introduzidos.

Ainda que esse seja um tópico totalmente interessante, elevando imensamente a potência do longa, há no filme um tom presunçoso, que por muito pouco não prejudica toda a obra. Em parte, Denis Villeneuve acredita demais na grandiosidade construída, algo que leva todo elenco de apoio a acreditar no tom profético e profundo de qualquer fala do roteiro, tornando Blade Runner 2049 um filme afetado em muitas ocasiões. É nesse mesmo lugar que o roteiro de Hampton Fsncher e Michael Green parece acreditar ser necessário a explicação de todas as as informações existentes na narrativa. Ainda que haja essa peça faltante, essa busca por completar um quebra cabeça, nem tudo é tão complexo e surpreendente como os realizadores acreditam, chegando ao ponto de colocar flashbacks do próprio filme para que o espectador se situe na narrativa, algo que aposta na ingenuidade do espectador.

Realmente Blade Runner 2049 é um filme repleto de informações, que pretende escrever um grande capítulo dessa nova mitologia. Nesse aspecto macro, o longa acredita realmente estar consolidando uma coisa extremamente grandiosa, algo que, de novo, remete aquela velha obstinação de Ridley Scott por criar mundos. O longa funciona muito mais no âmbito íntimo, na busca de K por aquela verdade, um ser que é convidado a perambular pelas incertezas daquele universo.

Blade Runner 2049 é um filme que se insere nessa incerteza, que até pode entregar essa peça faltante, mas a sensação ainda é de descrença, ainda é cercada pela mesma curiosidade que resultou na realização desse novo capítulo. O que ocorrerá agora em 2059, 2069, 2079 e assim por diante? Na cadência dos mais de 160 minutos, Blade Runner é um filme que tem o prazer em questionar e criar um universo de desconfiança, algo que comprova o quão vivo é mundo daqueles replicantes.

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